terça-feira, 26 de junho de 2012

Comércio de carbono e o mecanismo REDD+ ameaçam a produção alimentar e a soberania dos povos africanos



Charge em http://www.celsias.com/article/seeing-redd-could-there-be-more-complicated-way-sa/
Camponeses “cultivam” carbono para os poluidores em Moçambique
Camponês cuida de floresta em Nhambita – Foto: Africa News
A produção alimentar e a soberania dos povos africanos correm o risco de estar seriamente comprometidas devido a implementação de projetos de plantio e conservação de árvores para a captura de carbono e a chamada Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal Plus (REDD+). Tais projetos poderão conduzir o continente a graves situações de insegurança alimentar e resultar na perda da posse de terra e do controle de recursos florestais por parte de camponeses de África.
Em Moçambique, esse cenário não vai demorar a se concretizar, uma vez que o país ofereceu seu território para servir de “modelo” para projetos de captura de carbono e para a REDD +.
Ao cair da tarde, Albertina Francisco*, camponesa da comunidade de Nhambita, na província de Sofala, em Moçambique, regressa à sua casa, cansada, depois de mais um dia de atividade em sua machamba [palavra usada em Moçambique para dizer roça]. Além de tomar conta do milho, mapira (uma espécie de sorgo) e mandioca que cultiva, Albertina passou a ter uma tarefa a mais: cuidar das árvores que plantou há alguns anos atrás para garantir que no final do ano não seja penalizada pela Envirotrade, a empresa com a qual tem um contrato de provisão de carbono. É que Albertina deve, por obrigação, evitar a morte das plantas e garantir um bom desenvolvimento delas de modo que, pelo menos 85% sobrevivam.
“Além do milho e da mapira, agora tenho também que ver as árvores, para não morrerem. Plantei muitas árvores e não é fácil controlar todas”, disse Albertina que visita a sua roça duas vezes ao dia.
Como Albertina, outros 1.400 camponeses de Nhambita e outras comunidades do posto administrativo de Púngue, em Sofala, foram contratados para plantar e cuidar de árvores em suas terras. “Quando chegaram, disseram que o projeto era bom, porque ao plantar as árvores receberíamos dinheiro para combater a pobreza e seríamos donos [das árvores] mesmo depois do projeto terminar”, conta um camponês de Nhambita.
O projeto chama-se “Nhambita Community Carbon Project”. O objetivo da Envirotrade é capturar carbono a partir do agroflorestamento, comercializar os créditos de carbono no mercado voluntário – neste momento, Europa e Estados Unidos. Comprando créditos de carbono, as empresas de países industrializados podem “vender” uma boa imagem aos seus clientes, limpar sua consciência e continuar a contaminação do planeta. Com a implementação do REDD+ e a compra dos créditos de carbono pretende-se que países ricos continuem a emitir gases do efeito estufa, desde que financiem projetos de captura de carbono em outros lugares, geralmente em países do sul.

Supervisor técnico da Envirotrade mostra área protegida
Foto: Africa News
Com esse projeto, a Envirotrade diz estar também contribuindo para diminuir a pobreza das populações.
Para além do uso de terras para o plantio de árvores (gliricidia, faidherbia, cajueiros, mangueiras, espécies madeireiras), as comunidades são igualmente chamadas a proteger e patrulhar uma demarcada área de pouco mais de 10 mil hectares, dos quais a Envirotrade também comercializa créditos de carbono através do mecanismo REDD+.
Os serviços de plantio, conservação e proteção das florestas são regidos por um contrato entre a Envirotrade e os camponeses. O contrato é por tempo determinado e tem a duração de apenas sete anos. Contudo, de acordo com as cláusulas do contrato, o produtor [camponês] tem a obrigação de plantar e cuidar das árvores e receberá um valor anual que varia em função do sistema escolhido e da extensão da terra usada. Após sete anos o pagamento cessa, mas a obrigação de cuidar permanece. “É obrigação do camponês continuar a cuidar das plantas que lhe pertencem, mesmo depois dos sete anos da vigência deste contrato”, determina uma das alíneas da cláusula sobre as obrigações do produtor.
De acordo com a Envirotrade, uma árvore captura carbono por um período de entre 50 a 100 anos. A obrigação de cuidar das plantas e florestas pelos camponeses passa, automaticamente, a ser multigeracional. “Se um camponês perde a vida dentro do período de vigência do contrato, este passa para os legítimos/legais herdeiros [filhos] com todos os direitos, mas também obrigações”, esclarece António Serra, Diretor Nacional da Envirotrade.
Destaque-se que os contratos que regem a atividade não trazem capítulo sobre direitos dos camponeses.

Apoio da Comissão Europeia ao projeto da Envirotrade
Foto: Africa News
Nhambita é uma comunidade do distrito de Gorongosa, no posto administrativo de Púngue, centro de Moçambique. É rico em biodiversidade e ostenta uma vegetação e riqueza florestal de se cobiçar. A Comissão Europeia financiou a Envirotrade do início do projeto, em 2003, até 2008 com cerca de 1500 mil euros para atividades de pesquisa e experimentação em Nhambita. A Comissão Europeia cortou o financiamento e uma das razões foi por ter constatado irregularidades na metodologia proposta para a medição do carbono.

O que o camponês ganha no negócio
De acordo com a Envirotrade, os seus projetos têm por objetivo aliviar a pobreza das comunidades, proporcionar desenvolvimento sustentável e conservar a biodiversidade. “É uma nova forma de fazer negócio”, afirma a empresa no seu website, que acredita oferecer um novo modo de vida para indivíduos e comunidades.
Um contrato de um camponês que tivemos acesso estabelece que, a título de prestação de serviço, ele faça o plantio de árvores numa área total de 0,22 hectares (22 metros por 22), no seu quintal, para receber um valor total de 3.215 meticais [moeda oficial de Moçambique], o que corresponde a 128 dólares, para os sete anos de duração do contrato. Para ganhar dinheiro suficiente e aliviar a pobreza, este camponês precisaria de muito mais hectares, diversificação de sistemas e plantar muito mais árvores. O que se verifica praticamente impossível.
O sistema mais pago pela Envirotrade denomina-se “plantação florestal” e pode pagar ao produtor cerca de 17.500 Meticais ( 670 dólares) divididos por sete anos.
Estes valores são referentes a um hectare, ou seja, o valor pode ser mais alto ou mais baixo dependendo do tamanho da área. Os camponeses em Nhambita têm uma área média de um hectare por família. “Um camponês que tenha 1 hectare pode, em um ano, assinar um contrato com o sistema de bordadura válido por sete anos, no ano seguinte, na mesma área, assinar um contrato de coassociação para sete anos e, no terceiro, assinar um contrato de sete anos para o sistema de quintal. Assim, esse produtor ficará ligado ao projeto por muito tempo”, explicou Antônio Serra, Diretor Nacional da Envirotrade em Moçambique.
Mas não se engane quem pensar que com REDD+ e o plantio de árvores vai ficar rico: “O negócio de carbono não é para tornar ninguém (camponeses) rico. O próprio mercado mostra que tem muitos custos. Não vai tornar as comunidades ricas. As pessoas precisam ter outras formas de rendimento”, disse em entrevista Aristides Muhate, gestor de carbono da Envirotrade. A empresa parou de emitir novos contratos há três anos, devido a problemas financeiros.

Soberania alimentar em perigo
É importante destacar que a dedicação por esses serviços poderá aumentar a insegurança alimentar da comunidade e das famílias, se olharmos para o tempo e a dimensão da área que o camponês precisa para plantar uma quantidade de árvores que lhe possibilite ganhar mais dinheiro. Isso levará o camponês a “cultivar carbono” no lugar de culturas alimentares.
Por outro lado, “o enfoque nos valores econômicos da conservação das florestas comunitárias, promovida pela Envirotrade, poderá tornar os valores culturais, espirituais e biológicos menos importantes, uma vez que as comunidades sempre souberam conservar as florestas por gerações e gerações”, diz um estudo de Jovanka Spiric, que investigou os impactos socioeconômicos do esquema REDD implementado em Nhambita.
Existe um número considerável de camponeses que abandonaram a roça e se dedicam em tempo integral ao aceiro e patrulha as florestas da área REDD+.
Gabriel Langa*, pai de quatro filhos e com duas esposas, é chefe do grupo que aceira e patrulha o bloco dois, uma área de REDD+ “protegida” na zona de Bué Maria, em Púngue. Antes cultivava para alimentar a família.
“Agora a atividade principal é o aceiro. Não tenho tempo para ir à machamba”, disse Langa.
Langa vai ganhar 8.845 Meticais (340 dólares) pela fase do aceiro da área “conservada” e dividi-los pelo o grupo (de quatro membros) que chefia.

As florestas nunca estiveram em risco de desaparecer…
Para a Envirotrade, a zona tampão do parque Nacional de Gorongosa], onde se encontra a comunidade de Nhambita, estava em risco de desaparecer devido ao abate massivo de árvores para carvão e queimadas descontroladas.
O comitê de Gestão dos Recursos Naturais  da localidade de Púngue, que funciona a partir de Nhambita, em Gorongosa, estabelecido antes da chegada da Envirotrade, junto com os líderes comunitários, desmente essa teoria e afirma que sempre soube cuidar e conservar as florestas e a terra na localidade.
“A comunidade não tinha nenhum problema e sempre soube gerir os recursos. O estabelecimento do Comitê de Gestão, em 2011, veio a reforçar essa capacidade, porque tivemos treinamento para isso”, diz Francisco Samajo, presidente do referido comitê, que acrescenta que “isso é o que provavelmente trouxe a Envirotrade para cá”.
Aristides Muhate, da Envirotrade, reage: “Às vezes, as pessoas querem impor o seu mérito acima de tudo. Todo mundo sabe que essa zona seria hoje de licenciamento para corte ilegal de madeira. Ele [o chefe do comitê de gestão dos recursos] não teria dinheiro para fazer o patrulhamento que ele faz”.
A Envirotrade financia o comitê de gestão dos recursos naturais para esta, por sua vez, pagar fiscais para patrulhar as florestas e “defendê-las” contra membros da mesma comunidade.
Embora os camponeses afirmem ter benefícios de alguma forma com o projeto da Envirotrade (árvores de fruta, algum dinheiro anualmente, posto de saúde, transporte em caso de doença), parece não haver consenso em admitir que as comunidades eram muito pobres e que a gestão de suas florestas e terras era deficiente.
Outro camponês de Nhambita, Raimundo Eduardo, afirmou que nunca se considerou pobre, porque, segundo ele “tenho machamba e sempre trabalhei”.

Abandono do plantio de árvores: nem todos consideram a atividade divertida
Juvenal Francisco, 31, camponês de Nhambita, abandonou o plantio de árvores em 2010 por considerar os serviços sem rendimento. “Parece que eu só trabalhava para eles e não via benefícios para mim”, conta Francisco, que por iniciativa própria dirigiu-se à Envirotrade para manifestar interesse de abandonar a atividade.

Família de camponeses que abandonou o
plantio de árvores – Foto: Africa News
O que desmotivou Francisco a rescindir o contrato foi o fato de, a partir do quarto ano, não ter sido pago o valor anual estipulado, por supostamente não ter cuidado devidamente das plantas como a Envirotrade determinou. Juvenal Francisco considera que houve falta de satisfação de uma das obrigações com que a Envirotrade se comprometeu : a de pagar-lhe durante sete anos. “A partir do quarto ano não me pagaram mais e nunca me explicaram o porquê”, disse.
Juvenal conta que tinha plantado mais de 900 unidades de plantas madeireiras e de fruta desde 2007. Agora, dedica o seu tempo para produzir milho, batata doce, mapira e mandioca.
Este tem sido um grande conflito entre a Envirotrade e muitos camponeses. Um elevado número de “contratados” é descontado por não atingir os 85% da taxa de sobrevivência determinada no contrato. A nossa equipe de reportagem também constatou que, nos últimos três anos, tem-se verificado atrasos nos pagamentos dos serviços ambientais, devido a problemas financeiros.

Camponeses não sabem o que estão fazendo
As comunidades de Nhambita desconhecem o conceito REDD+ e, apesar de alguns camponeses saberem que plantam árvores e conservam as florestas “para vender carbono”, demonstram desconhecer o conceito e os seus mecanismos em sua profundidade.
O Gestor Nacional de Carbono dos projetos da Envirotrade, o engenheiro florestal Aristides Muhate, justifica este fato nos seguintes termos: “há diferentes níveis de informação. Não temos porque perder tempo explicando esses conceitos complicados para os camponeses”. Aristides faz a declaração baseando-se nos baixos níveis de escolarização que a maioria da população de Nhambita e arredores possui.
No entanto, isso pode ser considerado uma violação do direito à informação prévia e ao consentimento livre antes do início das atividades em sua terra. “Sabemos que o rendimento de plantar árvores vem do carbono. No fundo eu não sei mais nada sobre isso”, confessou Elias Manesa, da comunidade de Mutabamba, que mostrou não compreender o que é carbono.
O não fornecimento de toda informação sobre o negócio de carbono da Envirotrade com os recursos da comunidade coloca em xeque os níveis de transparência no processo. A fraca ou inexistente compreensão dos conceitos ligados à REDD+ e aos mercados de carbono por parte dos camponeses faz com que eles disponibilizem os seus recursos e se envolvam em um negócio sem saber as suas implicações: permitir que poluidores do norte continuem com as emissões de carbono na atmosfera, o que coloca em risco o bem estar dos mesmos camponeses, se levar em conta que essas emissões trarão impactos negativos em Moçambique, como a seca e inundações.
Uma mulher camponesa que não tem contrato pessoal com a Envirotrade, mas plantou e cuida das árvores porque seu parceiro decidiu por ambos fazê-lo, também mostra desconhecer a finalidade da atividade.“Só sei que meu marido recebe dinheiro [anualmente] por causa das árvores que plantamos. Não sei de mais detalhes”, contou. De fato, mais da metade dos contratados pela Envirotrade são do sexo masculino. Poucas mulheres detêm posse de terra em Moçambique, embora seja a camada que mais esforço empreende na atividade de produção alimentar e em outros trabalhos com a terra.

Eminente conflito social
Começam a se instalar sinais de conflitos sociais relacionados com os Pagamentos dos Serviços Ambientais (PSA) entre os membros da comunidade de Nhambita. No futuro o cenário poderá vir a piorar.
Camponeses que não estão contemplados nos PSA manifestam uma espécie de ressentimento por não receber o dinheiro da Envirotrade.
Em outros projetos REDD, em países como Indonésia, os pagamentos por serviços ambientais criam desigualdades devido à diferença na renda e isso tende a criar divisões na comunidade e a comprometer a unidade organizativa, social e cultural.
Por exemplo, o jornal francês Le Monde Diplomatique publicou recentemente um caso de expulsão de camponeses devido à implementação de REDD no México.
Jossias Jairosse é recém-chegado em Nhambita e trabalha na carpintaria comunitária na sua localidade. Quando se instalou na comunidade, a Envirotrade tinha parado com as contratações. Sente-se ressentido e inferior em relação aos demais vizinhos, uma vez que possuem uma renda anual que ele não tem nenhuma possibilidade de obter.

Território moçambicano cobiçado por outros para REDD+
Cerca de 15 milhões de hectares [19% do território nacional] estão sendo pretendidos por uma companhia de capital britânico para REDD+. Os casos de usurpação de terras relacionados com a Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal poderão acrescer esta cifra se incluirmos produção de agrocombustíveis e plantações de monoculturas diversas, porque podem converter-se também em REDD+, já que inclui cultivos e solos para os bônus de carbono, e não somente florestas. Segundo o inventário florestal nacional de 2008, cerca de 70% do país (54,8 milhões de hectares) é predominantemente coberto de florestas e outras formações lenhosas. Essas áreas correm o risco de ser usadas para a captura de carbono.
Moçambique encontra-se em posição de privilégio entre os países mais “cobiçados” para a implementação dos chamados projetos de desenvolvimento, com investimento estrangeiro, na África. Por exemplo, o Banco Mundial considera Moçambique como um destino certo para projetos de REDD, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo e Agricultura Industrial.
Empresas do norte têm adquirido terras em Moçambique para a produção, exportação, agrocombustíveis e, agora, REDD+. Atualmente, até os chamados países emergentes, a Índia e o Brasil, estão adquirindo terra para o agronegócio e extração mineral.
Na maioria desses casos, comunidades locais, em particular camponeses e populações indígenas, são fortemente afetados e muitos dos seus direitos são violados. Para o caso do REDD+, há um eminente risco de camponeses servirem de empregados a companhias que vão usar recursos florestais e os solos locais para recorrer aos créditos de carbono internacionalmente e maximizar seus lucros, sem necessariamente contribuir para eliminar a pobreza das comunidades.
Na Uganda, 22 mil camponeses foram desalojados de suas terras por conta de um projeto de compensação de carbono florestal em 2011.
Matéria do Africa News, publicada no Brasil de Fato.
EcoDebate, 26/06/2012

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