segunda-feira, 18 de junho de 2012

Mapa mostra os locais de maior incidência do trabalho escravo no Brasil


trabalho escravo
Coordenada por professores da USP, publicação disponível na internet mostra os locais de maior incidência do trabalho escravo no Brasil e oferece mecanismos para prever – e evitar – esse tipo de crime no País
IZABEL LEÃO
Enquanto o Projeto de Emenda Constitucional do Trabalho Escravo (PEC 438/2001) – que prevê o confisco da propriedade de quem for flagrado explorando trabalho em condições análogas às de escravidão – aguarda para ser votado no Senado, o combate à escravidão no Brasil no século 21 ganha um novo aliado: o Atlas do Trabalho Escravo no Brasil, material que caracteriza, pela primeira vez, a distribuição, os fluxos, as modalidades e os usos do trabalho escravo no País, nas escalas municipal, estadual e regional. O Atlas está disponível gratuita e integralmente no endereço eletrônico http://migre.me/9bewu.
Como a existência de trabalho escravo no País tem desafiado as instituições competentes a organizar ações para erradicá-lo, a organização Amigos da Terra – Amazônia Brasileira idealizou e lançou o documento exclusivamente na internet, para acesso gratuito a todos os interessados. Sob coordenação dos professores Hervé Théry e Neli Aparecida de Mello, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, a iniciativa contou com os dados levantados no doutorado de Eduardo Paulon Girardi, geógrafo da Unesp de Presidente Prudente, e a bela diagramação dos mapas ficou por conta do também geógrafo, formado pela USP, Julio Hato.
O documento apresenta duas novas e poderosas ferramentas para os gestores de políticas públicas, atores econômicos e financeiros: o Índice de Probabilidade de Trabalho Escravo e o Índice de Vulnerabilidade ao Aliciamento. “Com essas ferramentas, os grandes financiadores, no caso bancos e instituições financeiras, poderão evitar concessões para financiamentos a empresários ligados ao trabalho escravo”, explica Neli.
Com o Atlas, o poder público pode contar com um instrumento que avalia a probabilidade de ocorrência de trabalho escravo em regiões e setores específicos da economia, facilitando o trabalho de prevenção e as ações de combate ao problema, não necessitando esperar por denúncias. De acordo com dados da Pastoral da Terra (CPT) – ligada à Igreja Católica –, desde 1995 mais de 42 mil pessoas foram libertadas das condições de escravidão pelo Estado brasileiro. “Esse número ainda é fruto de denúncias da sociedade civil e do trabalho de campo de resgate do Grupo Especial de Fiscalização Móvel da Secretaria de Inspeção do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego”, afirma Neli.
A publicação apresenta o perfil típico do escravo brasileiro do século 21. Constatou-se que 95% são homens, jovens, analfabetos funcionais, pobres e, na maioria dos casos, migrantes do Maranhão, do norte de Tocantins ou do oeste do Piauí, que, em busca de serviço “farto” em fazendas, mesmo em terras distantes, rumam para esses locais, e geralmente são utilizados em atividades vinculadas ao desmatamento.
Segundo o professor Hervé Théry, a obra se baseou no levantamento e cruzamento de dados de várias fontes oficiais, como o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas de Educação (Inep) do Ministério do Trabalho, para levantar o nível de alfabetização dos trabalhadores; o IBGE; o Datasus do Ministério da Saúde, que aponta a causa mortis derivada de homicídios; e também a Comissão da Pastoral da Terra, que tem um organizado trabalho de coleta de denúncias. “Eu, como estrangeiro, afirmo que o Brasil está muito bem informatizado com seus dados públicos. Tudo está disponibilizado on-line”, acrescenta Théry, que nasceu na França.
Ferramentas – O Índice de Probabilidade de Trabalho Escravo é uma ferramenta inovadora e essencial para gestores de políticas públicas, que pode contribuir expressivamente para o planejamento governamental da sustentabilidade socioambiental. É uma avaliação de risco. Já o Índice de Vulnerabilidade ao Aliciamento é uma ferramenta que pode ser aplicada por gestores de políticas públicas e sociais. “Essa ferramenta aponta para as regiões de origem do escravo, propondo uma ação urgente do poder público. Visa à prevenção do trabalho escravo em determinadas regiões, assim como à proteção de grupos sociais altamente expostos ao fenômeno. Esse índice complementa o índice de probabilidade”, explica Théry.
Os coordenadores alertam que o mapa do Índice de Vulnerabilidade aponta também manchas e modalidades expressivas, igualmente graves, de trabalho escravo em outras regiões – principalmente no Centro-Oeste e Nordeste – e em outros setores, mas o perfil referido no mapa é decididamente majoritário. “Há, pelo menos, 20 municípios com alto grau de probabilidade de trabalho escravo localizados nas regiões de fronteira na Amazônia brasileira. Nessas áreas, coincidem a queima de madeira para a fabricação do carvão vegetal, as altas taxas de desmatamento, o trabalho pesado de destoca para formação de pastagem e atividades pecuárias nas glebas rurais ocupadas.”
Um indivíduo é escravo, segundo definição de Girardi, quando é forçado a trabalhar por meio de opressão física ou psicológica; possuído ou controlado por um “empregador”, geralmente através de abuso mental ou psicológico ou ameaças de abuso; quando é desumanizado, tratado como um objeto ou comprado e vendido como uma “propriedade”; e quando é fisicamente coagido ou submetido a restrições no direito de ir e vir.
Neli e Hervé: subsídios para políticas públicas
O documento aponta que há ainda outra característica da escravidão contemporânea – a duração irregular do tempo de trabalho. É uma duração temporária, de forma que, quando o trabalhador não é mais necessário, é dispensado sem nenhum tipo de pagamento. Théry e Neli alertam, contudo, que nem sempre esses trabalhadores voltam para suas casas, pois antes disso são assassinados pelos criminosos que os escravizam.
Segundo dados do Atlas, quando a libertação ocorre por ação do grupo móvel do Ministério do Trabalho e Emprego, este obriga o responsável pela escravidão a pagar todos os salários atrasados e encargos sociais, além de cobrir as despesas de retorno dos trabalhadores aos seus lugares de origem. Além disso, os trabalhadores resgatados passam imediatamente a receber os benefícios do seguro desemprego – assistência financeira temporária, não inferior a um salário mínimo.
Os coordenadores afirmam que as formas e origem do cerceamento da liberdade dos trabalhadores são várias, indo desde o isolamento geográfico até comportamentos ameaçadores por parte dos empregadores. Elas envolvem aspectos ligados ao transporte, alimentação e salários. O trabalho ocorre em locais de difícil acesso, cujo custo de transporte normalmente é caro e debitado aos trabalhadores; a intermediação entre o trabalhador e o empregador é feita por pessoas inescrupulosas, conhecidas como “gato”; a alimentação, comprada compulsoriamente em armazéns dos proprietários das fazendas a preços elevadíssimos, transforma-se em dívidas crescentes, as quais se acumulam com o pagamento da viagem e dos instrumentos de trabalho e proteção, que deveriam ser fornecidos pelo patrão. As atividades desenvolvidas são árduas, geralmente associadas às condições degradantes, pois, geralmente, moram em barracos ou em alojamentos comunitários, cujas condições de higiene são as piores possíveis.
Os autores ressaltam que não adianta apenas libertar os trabalhadores encontrados nessas condições e reencaminhá-los a novos setores e atividades econômicas. “É fundamental a definição de política pública eficiente e adequada, para que não ocorram reincidências, já que não são raros os casos de pessoas que são escravizadas por diversas vezes”, destaca o Atlas.
Os mapas – A primeira configuração da dinâmica do trabalho escravo, retratada no mapa da Isometria dos Trabalhadores Escravos Resgatados, mostra que a categoria mais elevada, revelada pela “mancha” mais escura, concentra-se no Estado do Pará, mas também se estende pela extensa faixa que vai até Rondônia. O foco principal são as microrregiões do sul de Goiás e noroeste da Bahia. “Os valores intermediários revelados pela mancha alaranjada escura, entre 5 e 20 resgatados, chamam a atenção, pois indicam regiões em que já ocorreram resgates de trabalhadores, porém em menor número, e que podem ser potenciais locais de ocorrência mais expressiva do que as já conhecidas”, explica Théry.
O mapa Fluxo dos Trabalhadores Escravos mostra o deslocamento dos trabalhadores do município onde nasceram até aquele em que foram libertados do trabalho escravo. Nota-se que o maior fluxo de migração – cerca de 800 trabalhadores – é o do Maranhão em direção ao Pará. O segundo fluxo se estende do Tocantins para o Pará, envolvendo 600 trabalhadores libertados. Já o terceiro fluxo se constitui de 400 trabalhadores que migraram do Maranhão para o Tocantins. Já a quarta origem e destino dos trabalhadores indica 200 indivíduos que saíram do Paraná, Distrito Federal, Bahia, Alagoas e Maranhão com destino ao Mato Grosso.
A questão social e educacional dos trabalhadores também é abordada no Atlas. O mapa aponta onde se dá o maior número de indivíduos analfabetos funcionais: todos os Estados do Nordeste, o extremo oeste do Estado do Amazonas e o leste do Pará são os espaços onde se encontram os maiores índices de analfabetismo.
Neli explica que existe uma clara coincidência entre os dados territoriais do analfabetismo funcional e a naturalidade dos trabalhadores libertados da condição de escravos. “Com isso podemos afirmar que o baixo grau de escolaridade e de qualificação profissional, a necessidade de emprego e a dificuldade de discernir as promessas irreais da oferta de empregos os expõem, mais ainda, às possibilidades de se tornarem vulneráveis às ofertas, quase sempre fictícias, dos intermediários responsáveis pela cooptação de trabalhadores.”
O mapa Desmatamento por Município mostra a forte correlação entre desmatamento e trabalho escravo, destacando a concentração de áreas na Amazônia oriental e no norte do Centro-Oeste. Vale lembrar que o território amazônico possui 21% das terras oficialmente reconhecidas como devolutas, 21% sob disputa – onde ocorre, hoje, a maior parte dos conflitos pela posse da terra e o emprego de trabalho escravo – e 4% sob o domínio privado, além de 43% de áreas protegidas. As terras devolutas deveriam ser geridas pelo poder público, que não o faz, deixando os trabalhadores ainda mais vulneráveis aos empregadores e agenciadores de mão-de-obra escrava, mostra o Atlas.
O pior, destaca Théry, é que o governo vem adotando iniciativas que estimulam a expansão econômica e especulativa da floresta, a exemplo da Medida Provisória 458, que regulariza até 1.500 hectares de terra na Amazônia sem licitação. “Medidas como essa levam a mais desmatamento e consequentemente a mais emprego de mão-de-obra escrava.”
Ainda de acordo com o Atlas, os dados apontam que o trabalho escravo no Brasil contemporâneo é essencialmente um problema de pobreza. A miséria da população é explorada por grupos de proprietários de terras criminosos, sem escrúpulos, que visam ao lucro pelo lucro e não enxergam o trabalhador como um ser humano.
“Por isso, não adianta apenas aumentar a fiscalização e as ações de libertação de escravos: para a prevenção, é preciso combater a pobreza extrema. Muitas vezes, os trabalhadores que são libertados da escravidão voltam para sua região de origem e, sem encontrar condições para prover seu sustento, acabam sendo escravizados novamente”, analisa Girardi.
O Atlas do Trabalho Escravo no Brasil está disponível no endereço eletrônicohttp://migre.me/9bewu.
Matéria do Jornal da USP, publicada pelo EcoDebate, 18/06/2012

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