sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Vitória do Xingu, cidade-sede de Belo Monte, vive sucessão de denúncias


Vitória do Xingu ganhou na loteria. No prazo de um ano, esse pequeno vilarejo com ruas de terra e calor amazônico declarou-se independente dos recursos carimbados do governo federal, ao aumentar sua receita própria pelo menos cem vezes. O bilhete premiado atende pelo nome de usina de Belo Monte. Matéria de Caio Junqueira, de Vitória do Xingu (PA), noValor Econômico, socializada pelo ClippingMP.
Com praticamente todos os canteiros de obras em seu território, Vitória do Xingu receberá 92% de todo o Imposto sobre Serviços (ISS) que será pago em decorrência da construção da terceira maior hidrelétrica do planeta. Algo entre R$ 5 milhões e R$ 10 milhões por mês, a depender do ritmo da obra. Isso em uma cidade cujo balanço mais recente disponível no Tesouro Nacional (2010), mostra receita anual de R$ 16,6 milhões, dos quais R$ 15,9 milhões decorrem de transferências voluntárias da União e R$ 600 mil de arrecadação própria, sendo metade de ISS.
Assim, a chegada das obras e a movimentação da economia deveriam soar como música às suas autoridades e aos seus 13.431 habitantes, dos quais 53% vivem na zona rural e convivem com baixos índices sociais: 40% de domicílios não têm abastecimento de água, 30% estão sem energia elétrica e 25% da população é analfabeta. Entretanto, o efeito foi reverso. A cidade acabou por entrar em um atoleiro político sem fim, com nuances que remetem aos grandes escândalos de Brasília.
Há ali suspeitas de vídeos gravados em que integrantes do Legislativo aparecem recebendo propina, tal qual ocorreu no caso que destituiu do cargo o ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda, em 2009. Assim como há, comprovados pela Polícia Federal, desvios de recursos federais, como as reveladas pelo caso dos Anões do Orçamento, em 1993, bem como a criação desenfreada de empresas laranjas semelhantes às do esquema montado, também segundo a PF, por Carlos Cachoeira. As referências mais fortes, porém, são com o escândalo do mensalão, em julgamento no Supremo.
Com a palavra, a delatora: a vereadora do PSDB, Elsa Dallacqua (ex-PRP e PRB). “Logo que o prefeito Liberalino Neto (PTB) assumiu, em 2009, ofereceu R$ 1 mil para cada vereador como uma “ajuda de custo” mensal, para que o apoiassem no cargo. Fui a única que não aceitou e por isso se iniciou uma perseguição contra mim”, disse. A partir daí, conta, passou a combatê-lo. Era a presidente da Câmara e filmou, fotografou e denunciou de sua tribuna desvios de recursos públicos na gestão municipal.
“Fiz a primeira denúncia em março de 2009 na Câmara e depois outras 39 no decorrer do ano. Mas não adiantou nada. Não foi aberto um processo para investigar o prefeito”, disse.
Até que decidiu ir à Polícia Federal de Altamira (PA), a 46 quilômetros dali e principal polo regional, que acabou abrindo uma investigação. “Aí o prefeito chegou a me oferecer R$ 400 mil para desmentir tudo. Como eu neguei, ele disse que dividiria esse valor para os outros oito vereadores que cassariam meu mandato em dois meses.”
Era setembro de 2009 quando um alvoroço tomou conta da PA-415, o único acesso pavimentado à cidade que a atravessa em um trecho de dois quilômetros até o precário porto do igarapé Tucuruí, afluente do rio Xingu. À altura da Câmara Municipal, foram distribuídos diversos CDs com um vídeo no qual Elsa aparece fazendo sexo oral em um homem. Era o início da vingança. As imagens geraram uma CPI que culminou com a abertura de processo de cassação do seu mandato por três motivos. Falta de decoro, já que a suspeita era de que o ato teria ocorrido dentro das dependências da Câmara. Improbidade administrativa, uma vez que ela teria descontado e não pago o INSS dos funcionários da Casa. E por compra sem licitação de 4.214 rolos de papel higiênico, 70 rodos, 32 baldes, 64 vassouras e 525 kg de açúcar. Elsa, que já deixara a presidência para uma aliada do prefeito – Luzia Efigênio (PTB) – optou por não apresentar defesa no Legislativo, motivo por que um defensor público foi convocado para defendê-la. Em três dias, perdeu o mandato.
Só que o prefeito e seus aliados não contavam que os relatos da vereadora a Polícia Federal resultariam na Operação Pandilha, deflagrada em agosto de 2011. Ela apontou a existência de um grande esquema no município envolvendo fraudes em licitações, empresas fantasmas em nomes de “laranjas”, superfaturamento e pagamento por serviços não executados que desviaram R$ 5,5 milhões. Estão presos até hoje o prefeito, os secretários municipais de Saúde, de Obras e de Finanças.
Até o pai do prefeito, Danilo Dâmaso, ex-prefeito de Marechal Deodoro (AL), foi preso. Ele já havia sido alvo de uma operação da PF em Alagoas em 2005, onde as investigações apontaram desvio de verbas de merendas escolares. Dono de uma extensa ficha policial e antigo aliado do senador Fernando Collor de Mello (PTB-AL), saiu da prisão para morrer na Santa Casa de Maceió em abril deste ano. Nenhum vereador, porém, esteve envolvido no caso. A contribuição deles, porém, foi dada ao não cassar o mandato do prefeito, que continua a receber seu salário do Executivo.
À época da operação, a movimentação para as obras de Belo Monte na região já eram grandes. Mas um item prometido pela Norte Energia, a formada por capital público e privado para financiar o empreendimento, não fora entregue ao Consórcio Construtor Belo Monte (CCBM), liderado pela Andrade Gutierrez e que tem o objetivo de erguer a usina. Trata-se da garantia de que Vitória do Xingu reduziria à metade o ISS das empreiteiras de Belo Monte, sob a justificativa de compensação pelo anunciado desenvolvimento que a usina levaria à região. Para as empresas, uma economia de R$ 1 bilhão no preço final da usina.
Embora sua composição acionária seja dividida com o setor privado, a Norte Energia é comandada por indicados pelo Palácio do Planalto, graças à forte participação das estatais Eletrobras, Chesf, Eletronorte e dos fundos de pensão Petros e Funcef. O homem forte ali é o gaúcho Valter Luiz Cardeal de Souza, ou Valter Cardeal, presidente do Conselho de Administração da Norte Energia, diretor de geração da Eletrobras e considerado o principal conselheiro da presidente Dilma Rousseff no setor.
Na região de Belo Monte, são frequentes os relatos de diálogos nada amistosos entre Cardeal e Liberalino, antes de sua prisão.
O motivo: a resistência do prefeito em reduzir o ISS. Ele não se mexeu para que o Legislativo aprovasse a proposta. Preso o prefeito, o vice Erivando Amaral (PSB), rompido politicamente com Liberalino desde 2009, assumiria as negociações. Cardeal nega as conversas: “De minha parte, não houve nada, nenhuma conversa. Só estive com o prefeito em audiência pública. E com o novo prefeito [em exercício] nunca conversei. Quem fala isso quer me prejudicar”.
No seu primeiro contato com os dirigentes da Norte Energia e do CCBM, Erivando, desconfiado, pediu que mostrassem suas identificações para comprovar que eram ligados à construção de Belo Monte. No segundo, rodou pelos canteiros e fez perguntas sobre o empreendimento consideradas óbvias pelos que o acompanhavam. A partir do terceiro, a relação estava bem azeitada. Foi questão de tempo para que ele concordasse em encaminhar à Câmara o projeto de lei que reduzia a alíquota do ISS do município. Acabou aprovado em novembro de 2011.
“O prefeito anterior fazia muito terrorismo com a Norte Energia e com o consórcio. Eu não podia ficar à mercê de uma briga antiga com essas empresas. Precisávamos dialogar”, afirmou. Relata que, nas negociações para a aprovação, a Norte Energia se comprometeu a ajudá-lo na eleição deste ano. Por exemplo, com R$ 260 mil a serem divididos para cada uma das 12 igrejas evangélicas da cidade. O dinheiro, segundo ele, não chegou. Assim como o dinheiro para cursos de qualificação profissional para os vitorenses que o CCBM deveria enviar – uma cláusula incluída na lei por ele mesmo. Diante da insatisfação, ele ameaça: “Podemos revogar essa lei a qualquer momento”. Apesar disso, a cidade está em obras, com prédios públicos em reforma e pavimentação.
Ocorre que seu futuro político, assim como o do antecessor, é incerto. Segundo a vereadora Elsa, que retomou o mandato há pouco mais de um mês tendo como base áudios da PF que mostram uma combinação da prefeitura com os vereadores para cassá-la de maneira sumária, a substituição do prefeito pelo vice em nada alterou o modo de operar na cidade. “Estão ocorrendo os mesmos esquemas. Só mudaram os nomes”, disse.
Nem foi preciso que ela fosse até o Ministério Público para fazer alguma denúncia. Cinco vereadores ligados ao prefeito preso foram em janeiro desde ano até a sede do Ministério Público do Estado em Belém para “devolver” R$ 5 mil que dizem ter recebido do prefeito em exercício para aprovar o projeto do ISS. A fonte dos recursos, segundo eles, foi a empresa Sotreq, a principal revendedora de máquinas Caterpillar na América Latina e fornecedora do CCBM em Belo Monte. Os vereadores denunciantes afirmaram se tratar de um “agrado” dado pela empresa, devido à aprovação do texto do ISS.
Recentemente, entregaram à promotora Amanda Lobato em Altamira áudio em que o prefeito em exercício tenta convencer uma das vereadoras que o denunciaram a mudar seu depoimento e a incriminar a presidente da Câmara, Luzia Efigênio (PTB) – a mesma que não cassou o prefeito preso. No áudio, além do prefeito e do vereador, aparecem um vereador da base do prefeito, dois advogados – um deles Robério Abdon, conselheiro da OAB do Pará- e uma servidora da prefeitura. O Ministério Público corre para pedir a impugnação de sua candidatura a prefeito.
“Esse áudio vai sustentar a nossa ação de improbidade contra ele e o pedido para impugnar sua candidatura. E se ele for eleito, vamos tentar impedir sua diplomação”, disse a promotora. Ela afirma que o que ocorre no município agora é semelhante ao que ocorreu com o prefeito anterior, embora agora haja também indícios de desvios de recursos municipais, que estão sob sua alçada. Também encaminhou ofícios à Controladoria-Geral da União (CGU), PF, Tribunal de Contas da União e Ministério Público Federal para que sejam verificados a manutenção e até ampliação do esquemas de desvios de recursos federais em Vitória do Xingu. Sobre o envolvimento da Sotreq, declarou que “não há como provar que o dinheiro veio da empresa” e que “não duvida de que ele pode ter vindo mesmo é da prefeitura”.
Ciente dos iminentes problemas judiciais que pode ter, o prefeito em exercício articulou para que sua candidatura fosse a única da cidade. Seu maior receio é de que, com o prefeito for solto – um habeas corpus pode ser julgado a qualquer momento no Supremo – a candidatura de Vando pode ser impugnada por outra, na medida em que ele, estando em exercício, deveria ter se desincompatibilizado do cargo. Nesse sentido, fez acordos com instâncias estaduais dos partidos, que retiraram a legenda de outros pretensos candidatos. Até mesmo o PTB, partido do prefeito preso e da presidente da Câmara, aliou-se a ele.
O risco de uma nova operação da PF também não está descartado. No dia em que o Valor esteve na cidade, dois policiais federais escoltavam funcionários da CGU que, um anos depois da Operação Pandilha, faziam uma fiscalização na aplicação dos recursos federais. “Pelo que vimos, não dá para concluir ainda se a situação está igual ou diferente da gestão anterior”, afirmou um dos analistas da CGU.
A Sotreq informou, via assessoria de imprensa, que “jamais foi procurada pelo Ministério Público Estadual do Pará para prestar qualquer tipo de esclarecimento” sobre a acusação e que seus funcionários “sempre agiram, e agem, em total conformidade com seu rigoroso Código de Ética e de Conduta, o qual é pautado pela moralidade e legalidade em todas as suas relações”. Robério Abdon, conselheiro da OAB, não respondeu ao pedido de entrevista.
A vereadora Elsa retomou seu mandato há dois meses, tendo por base laudo da Polícia Federal em que são registrados diálogos de uma secretária do prefeito preso com vereadores em que é articulada sua cassação. Sobre as outras acusações levantadas na CPI, ela afirma que o alto volume das compras feitas em sua gestão na presidência ocorreram devido à soma de compras feitas em oito meses de mandato. Quanto ao INSS, justificou-se afirmando que o recolhimento só aparece nos contracheques um ano após o pagamento. Nenhum órgão público abriu investigação contra Elsa por essas acusações. O prefeito em exercício de Vitória do Xingu atribui todas as acusações ao seu alegado favoritismo: “Sou atacado por todos os lados”, disse. A Norte Energia não respondeu a nenhum dos questionamentos da reportagem.
EcoDebate, 21/09/2012

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