“O receituário agronômico virou uma mera formalidade, pois no cenário das lavouras as coisas acontecem de outra forma, principalmente quando os agrotóxicos são aplicados por aeronaves agrícolas”, denuncia o engenheiro agrônomo Darci Bergmann, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail. Em incursões pela zona rural da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, Bergmann tem constatado situações de impactos ambientais e mau uso dos agrotóxicos nas lavouras agrícolas. “As chamadas normas operacionais, que estabelecem parâmetros de umidade relativa do ar, velocidade e direção do vento, temperatura ambiente, distância mínima de moradias, mananciais hídricos, viram ficção”, informa.
Engenheiro agrônomo formado pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, Bergmann trabalhou com agrotóxicos em uma multinacional e manteve revenda dos produtos e assistência técnica em mais de 400 propriedades rurais da fronteira oeste do estado. A experiência com o uso de herbicidas lhe mostrou que “esses produtos são de extremo impacto ambiental e não resolverão os problemas da fome no mundo”. Hoje, dedica-se à conscientização do uso de agrotóxicos.
Na entrevista a seguir, ele comenta os efeitos do herbicida clomazone, utilizado com frequência nas lavouras de arroz irrigado, fumo e cebola. “As sementes de arroz são tratadas com um produto químico, que é uma espécie de antídoto ao próprio clomazone. Assim, podem ser usadas doses maiores da formulação comercial, muito acima daquelas recomendadas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento”, menciona. Em outros estados, o clomazone é bastante utilizado nas lavouras de cana-de-açúcar e com a possibilidade dessa cultura se expandir para o Rio Grande do Sul, outras regiões do estado poderão ser afetadas com o herbicida.
Darci Bergmann é ambientalista e fundador da Associação São Borjense de Proteção ao Ambiente Natural – Aspan, a qual presidiu por várias vezes. Atualmente, o engenheiro agrônomo formado ministra palestras de educação ambiental e desenvolve projetos de recuperação ambiental, paisagismo e produção de mudas de espécies florestais nativas e é perito judicial.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o princípio ativo do herbicida clomazone? Desde quando ele é utilizado nas lavouras brasileiras?
Darci Bergmann – O clomazone é o nome técnico do produto ativo que é comercializado com vários nomes comerciais. Ele é mais conhecido com o nome comercial Gamit. Conheço esse produto há mais de 20 anos; ele é bastante utilizado nas lavouras de arroz.
IHU On-Line – O senhor visitou propriedades em municípios gaúchos como São Borja, Itaqui, Maçambará, Santo Antônio das Missões e Uruguaiana. O que constatou a partir dessas visitas?
Darci Bergmann – Por alguns anos, entre outras atividades profissionais, trabalhei com topografia, ou seja, medições de terra, projetos de barragens para irrigação e depois como perito judicial. Nas muitas incursões na zona rural, constatei várias situações de impactos ambientais dos agrotóxicos. O receituário agronômico era negligenciado e alguns produtos, mesmo que aplicados de acordo com as normas vigentes, causavam e ainda causam grandes mazelas. Portanto, em termos de agrotóxicos, não existe produto amigável ao meio ambiente. O nome já diz tudo. São venenos.
O que me chamou atenção é que o receituário agronômico virou uma mera formalidade, pois no cenário das lavouras, as coisas acontecem de outra forma, principalmente quando os agrotóxicos são aplicados por aeronaves agrícolas. As chamadas normas operacionais, que estabelecem parâmetros de umidade relativa do ar, velocidade e direção do vento, temperatura ambiente, distância mínima de moradias, mananciais hídricos, viram ficção. Quando uma equipe de aviação agrícola se desloca ao campo, ela até pode iniciar as operações dentro dos parâmetros, mas as condições meteorológicas mudam no decorrer das aplicações, principalmente nos meses de primavera e verão. Um vento que soprava a 6 km/h no início do trabalho, uma hora depois pode estar a mais de 10 km/h. A temperatura ambiente também se eleva e a umidade relativa do ar cai. Mas a pulverização aérea continua, porque as empresas de aviação agrícola alegam prejuízos se interromperem a operação. Há toda uma cadeia de interesses. As empresas e pilotos da aviação ganham por área aplicada. O proprietário da lavoura quer ver o serviço executado. Nesses casos, ninguém se lembra das derivas, aquela parte de produto que não cai na área almejada e que é arrastada para o ambiente no entorno, seja uma pastagem, um bosque, ou um manancial de água.
Se é assim com todos os agrotóxicos, existem aqueles que são extremamente voláteis, isto é, que se espalham no ambiente com incrível facilidade. É o caso dos herbicidas de ativo 2,4-D na formulação éster e do clomazone. Se alguém abrir uma embalagem de herbicida contendo clomazone (Gamit) no meio de um jardim e imediatamente fechá-la, alguns dias depois as plantas no entorno estarão apresentando sintomas de branqueamento. O produto é extremamente volátil. Essa característica, por si só, já seria suficiente para que ele fosse proibido. Mas não é o que acontece. É registrado para uso em várias culturas, tanto para aplicações terrestres como por via aérea.
Em minhas andanças recebi relatos de mortandade de árvores nativas e exóticas e pude constatar in loco esse tremendo impacto do clomazone sobre a flora, a tal ponto que a questão foi encaminhada ao Ministério Público Federal em Uruguaiana, pela Associação São-Borjense de Proteção ao Ambiente Natural – Aspan.
IHU On-Line – É possível constatar, nessa região do estado, problemas de saúde relacionados ao uso de agrotóxicos na agricultura?
Darci Bergmann – Sim. Existem casos de intoxicações agudas, aquelas que os médicos constatam com relação à exposição da pessoa a um determinado produto por manuseio inadequado. No entanto, há que se considerar que existe um ambiente todo comprometido. Nas épocas de aplicações mais intensas, principalmente nas lavouras de arroz e de soja da região, uma grande quantidade de herbicidas, inseticidas e fungicidas é aplicada via aérea e terrestre. Muitas lavouras estão próximas das áreas urbanas e a população recebe parte desses agrotóxicos pelas derivas. Os mananciais de água também são alvos dessa carga de venenos. Aí as coisas se complicam, pois há uma soma de princípios ativos diversos no ambiente, o que dificulta saber qual deles prejudica mais a população.
Esses produtos ou os seus metabólitos podem sofrer interações. As evidências de que respiramos um ar envenenado e bebemos águas que contêm resíduos de pesticidas já aparecem quando muitas espécies de plantas no campo, e até na cidade, apresentam sintomas na forma de clorose nas folhas e queimaduras seguida de morte. Alguns produtos, como é o caso do ativo clomazone, mostram bem a trajetória. Exemplares de cinamomos com branqueamento são vistos por toda a parte, inclusive nas cidades. As sucessivas aplicações determinam uma grande mortandade de árvores também de espécies nativas, como é o caso da canafístula, cujos esqueletos são visíveis por onde quer que se ande.
As plantas são indicadoras da pestilência química. Que efeitos isto pode ter sobre a saúde humana? Não atuo na área de saúde, mas constato o avanço de algumas doenças em pessoas de tenra idade. Os casos de leucemia são alarmantes. Mulheres jovens apresentam casos de câncer de mama. Perdi muitos amigos que lidavam diretamente com agrotóxicos nas suas lavouras, e seguidamente recebo informações de novos casos de câncer em pessoas na faixa produtiva.
Certa vez um professor da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS me passou uma informação sobre rendimento escolar dos alunos de primeiro grau neste estado. Nos municípios da metade sul, com algumas exceções, o rendimento escolar era menor. Poderiam ser citados vários fatores, desde a situação socioeconômica, aplicação de recursos na educação, entre outros. Coincidência ou não, na metade sul localizam-se as maiores lavouras de arroz irrigado, que utiliza grande carga de agrotóxicos. Também nessa parte do estado é mais intensivo o uso da aviação agrícola. As aeronaves agrícolas por muitas semanas fazem aplicações de agrotóxicos e os resultados aparecem na vegetação nativa remanescente. Em muitos casos, pequenos agricultores de subsistência já não conseguem mais produzir, tal o efeito das derivas sobre os seus cultivos. Cabe de novo a pergunta: Um ambiente doente pode ser bom para a saúde humana? Há muito que se descortinar nessa questão.
IHU On-Line – O senhor disse que o clomazone é bastante utilizado nas culturas de cana-de-açúcar, cebola e fumo. Por que o uso é mais intenso nessas culturas?
Darci Bergmann – O clomazone é um herbicida de amplo espectro. Em doses que variam nas formulações comerciais, algumas espécies vegetais são resistentes, mas as ervas competidoras não. Assim, o produto tem seu uso liberado para uso em diversas culturas, após ser registrado no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – Mapa e passar por avaliação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa e do Ministério do Meio Ambiente – MMA.
No Rio Grande do Sul, ele é mais usado nas culturas de arroz irrigado, fumo e cebola. Em outros estados, é aplicado em lavouras de cana-de-açúcar. Essa lavoura tende a se expandir no sul. O zoneamento agroclimático indica que o Rio Grande do Sul tem aptidão para o plantio de mais de 800 mil hectares de cana-de-açúcar. Se os herbicidas formulados à base de clomazone forem utilizados maciçamente nessa cultura, vamos ter em outras regiões do estado casos muito sérios com as derivas, o que já se constata na região em que vivo.
IHU On-Line – Quais são os procedimentos dos agricultores da região em relação às embalagens? Há uma conscientização em relação à devolução dos recipientes?
Darci Bergmann – Sim, nesse aspecto já há certo avanço. Mas esta é a parte mais fácil de ser resolvida. O problema é o que acontece com os 99% do agrotóxico que vai para o ambiente, porque a lavoura em que um agrotóxico é aplicado faz parte de todo o ambiente. Então, não existe aplicação segura. As grandes empresas do agronegócio fazem muito barulho em torno do recolhimento das embalagens, dando a entender à opinião pública que estão muito preocupadas com a questão ambiental. Será mesmo?
Veja, porém, que as coisas não são bem assim: as sementes de arroz são tratadas com um produto químico, que é uma espécie de antídoto ao próprio clomazone. Assim, podem ser usadas doses maiores da formulação comercial, muito acima daquelas recomendadas pelo Mapa. Isto acontece na fronteira oeste. De outra parte, as limitações de uso do produto comercial conhecido como Gamit mencionam que ele não deve ser aplicado a menos de 800 metros de culturas suscetíveis, hortas, pomares, vegetação ribeirinha, etc. Isto por si só inviabiliza o uso desse herbicida nas lavouras gaúchas. Mas, na prática, as coisas são bem diferentes.
IHU On-Line – O senhor mencionou que perdeu milhares de mudas de árvores nativas do seu viveiro em função do clomazone. De que maneira esse herbicida tem atingido as lavouras gaúchas? Essa situação se espalhou por outras regiões do estado?
Darci Bergmann – Sou vítima do clomazone, na cidade e no campo. Na área urbana tenho um viveiro de mudas florestais com dezenas de espécies. Em 2006, um vizinho contratou uma pessoa para aplicar dessecante no pátio com pulverizador costal. Não presenciei tal aplicação. Dias depois, as mudas de algumas espécies vegetais e plantas no meu jardim apresentaram sintomas de branqueamento. Isto foi constatado também na vizinhança, até uns 50 metros da área almejada. Vi logo que se tratava de produto à base de clomazone. O produto foi trazido de uma propriedade rural. Fiz a denúncia ao MP e houve laudo da Patrulha Ambiental – Patram e de um agrônomo.
Casos assim aconteceram em outras partes da cidade. Na minha chácara, dezenas de árvores das espécies canafístula e timbaúva, por mim plantadas, morreram e outras ainda agonizam. Simplesmente porque por ali passam as aeronaves carregadas com herbicida à base de clomazone e outros princípios ativos. Em propriedades ali próximas o problema se repete. E assim por todo o município de São Borja e outros da região.
IHU On-Line – De que maneira o uso de agrotóxicos têm prejudicado a agricultura? Por que os agricultores aderem a esses produtos?
Darci Bergmann – De que agricultura nós estamos falando? Se a agricultura agora é vista como um agronegócio, ou seja, ela é uma atividade empresarial e por isso ela deve ser lucrativa, o que interessa é produzir e ter retorno dos investimentos. Não importa se a produção é de alimento, tabaco, seja lá o que for. Nessa visão, o agrotóxico é visto como um aliado, um insumo necessário e as consequências ambientais e sobre a saúde ficam muito difusas; não entram no cálculo. Esses custos ficam por conta da sociedade como um todo. É claro que já existem produtores empresariais mais preocupados e que procuram alternativas de produção menos impactantes ao meio ambiente e à saúde.
De outro lado, existe a corrente orgânica que prega outro modelo de produção. Ela vem crescendo. Acredito que o consumidor, o cidadão tem que fazer as suas escolhas se quer uma produção mais saudável.
Nessa questão estamos ainda muito tímidos. Têm pessoas que reclamam dos preços dos produtos orgânicos, mas esbanja-se com futilidades. Quer dizer, ainda falta muito para atingirmos um patamar de consciência nessa área. Mas sou otimista. Dia chegará que daremos valor às águas cristalinas de um riacho, um bosque nativo e alimentos mais saudáveis.
IHU On-Line – Existe alternativa para o uso de agrotóxicos na agricultura hoje? Que modelo agrícola seria adequado ao modo de vida atual?
Darci Bergmann – Sim, existe. A própria pesquisa busca insumos e mecanismos de controle de ervas, pragas e doenças na agricultura convencional, aquela do agronegócio. Para citar um exemplo, já existe no mercado inseticidas formulados com princípios ativos extraídos dos frutos do nim, uma árvore da família meliácea, a mesma do cinamomo.
Mas a utilização de produtos químicos ainda se dará por um longo período e os seus impactos sobre o ambiente também. Alguns produtos vão saindo do cenário à medida que se descortine o véu que encobre os malefícios que provocam. Não é fácil, pois as pressões existem. O registro de tais produtos se baseia na versão da parte interessada. Ela informa o que lhe convém e não revela e talvez até desconheça os descaminhos de um determinado agrotóxico no ambiente. Quase sempre as “pesquisas científicas” se baseiam em experimentos em ambientes controlados, muito diferente do que acontece lá no campo.
O grande avanço se dará na agricultura orgânica, mudando o sistema de produção. Já existem experiências que deram certo, onde grandes produtores aplicam a integração com sistemas de manejo diferenciado. Nesses sistemas mais equilibrados, a propriedade é vista como um todo e ali há lugar para a produção e a preservação ambiental. A vegetação nativa é integrada à produção, pois serve de geradora de espécies que controlam pragas. Como se vê o campo é promissor para uma produção equilibrada.
IHU On-Line – Quais são as principais irregularidades na aplicação do herbicida clomazone? Quais as implicações da aplicação irregular de agrotóxicos via área?
Darci Bergmann – Em resumo, um produto com essas características de volatilidade e agressividade ambiental tem que ser proibido. Alegar que ele é necessário para o sucesso de algumas culturas é, no mínimo, compactuar com a destruição escancarada da nossa flora. Alguém revoltado com a morte dos cinamomos na sua propriedade se referiu assim: “O uso desse produto é um crime ambiental legitimado pelos órgãos oficiais”.
Com relação à aviação agrícola, ela deveria se limitar a atividades de semeadura, adubação e combate a incêndios. Ou utilizar produtos atóxicos. O uso de agrotóxicos via aérea é inviável, pois não é segura. Um avião em serviço sobrevoa áreas que nada tem a ver com a área almejada. Os seus defensores alegam que as equipes são treinadas e que as operações são as mais rápidas possíveis. Mas aí está uma das causas dos tremendos impactos dessa atividade. Um serviço é iniciado e termina em condições meteorológicas adversas porque tem outra operação pela frente.
As empresas de aviação agrícola fazem um esforço para “esclarecer” a opinião pública. Gastam em propaganda, mostrando aspectos positivos, mas encobrem a realidade dos fatos. Faltam com a verdade quando dizem que a atividade é bem fiscalizada. Alguém por acaso acredita que, nas temporadas de aplicações, exista alguém fiscalizando em cada lavoura?
Os relatórios de voo são preenchidos pelas próprias equipes. Alguns são meras montagens. Não retratam o que ocorreu em termos de fatores meteorológicos. Num caso que me chegou às mãos, os relatórios de voo em dois dias diferentes, continham os mesmos dados de velocidade e direção dos ventos. Esses relatórios são depois recolhidos pelos fiscais do Mapa.
Houve época em que trabalhei com herbicidas para arroz e soja. Alguns produtores tinham preferência pelas aplicações aéreas. Em várias ocasiões, cancelei as operações no campo devido a fatores adversos. Isto desagradava o piloto comissionado e o agricultor. Pelo menos evitei consequências mais graves nesses casos. O bom senso recomenda que o clomazone, entre outros mais, seja reavaliado e definitivamente proibido no Brasil. Não dá para jogar toda a responsabilidade do uso desses produtos sobre alguns profissionais, através do receituário agronômico.