Marco Weissheimer
A liberdade de cátedra está sendo ameaçada no Brasil por um projeto
que se apresenta como neutro ideologicamente e plural, mas que, na
verdade, está carregado de uma ideologia conservadora, obscurantista e
reacionária que pretende constranger a liberdade dos professores dentro
da sala de aula. A advertência é do historiador Éder da Silveira,
professor no Departamento de Educação e Humanidades, da Universidade
Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Doutor em
História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com
pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP), Éder Silveira integra a
Comissão de Ética Pública da UFCSPA que vem promovendo uma série de
debates públicos sobre temas éticos.
Em 2016, já foram realizados três debates. O primeiro discutiu o
direito de um profissional de saúde negar o atendimento a alguém, tendo
como ponto de partida o caso da médica que se recusou a atender uma
criança pelo fato da mãe desta ser filiada ao PT. O segundo tratou da
violência contra a mulher no ambiente universitário e o terceiro foi
sobre liberdade de cátedra e liberdade de expressão, um tema muito
presente no debate hoje tanto na educação escolar quanto na
universitária.
Em entrevista
ao Sul21, Éder Silveira fala sobre as
ameaças que pairam hoje sobre a liberdade de cátedra e a liberdade de
expressão no ambiente escolar e acadêmico, em especial por projetos como
o Escola Sem Partido que, supostamente, quer combater o que chama de
“doutrinação de esquerda” dentro das salas de aula, apresentando-se como
destituído de qualquer ideologia. No Rio Grande do Sul, esse projeto
tem entre seus defensores o deputado estadual Marcel van Hattem (PP) e o
vereador Valter Nagelstein (PMDB) que, recentemente, apresentou um
projeto na Câmara de Vereadores de Porto Alegre querendo proibir que
professores da rede municipal de ensino emitam opiniões dentro das salas
de aula.
Para o historiador, esses projetos limitam a liberdade de escolha dos
professores daquela que consideram a melhor abordagem sobre um
determinado tema. “É um projeto tão genérico que a simples menção à
teoria econômica marxista pode se transformar em justificativa para uma
denúncia e um processo contra um professor” alerta Éder da Silveira.
“Essa
é uma discussão mais antiga e vem se colocando desde os anos 90, quando
se começou a questionar a qualidade dos livros didáticos”. (Foto: Joana
Berwanger/Sul21)
Sul21:
Quais são as ameaças que pairam hoje
sobre a ideia de liberdade de cátedra e, de um modo mais geral, sobre a
liberdade de expressão nos ambientes escolar e acadêmico?
Éder Silveira: Essa discussão ganhou força nos
últimos anos, alimentada, entre outros fatores, pelas ideias dos
defensores do projeto Escola Sem Partido. Mas, na verdade, é uma
discussão mais antiga e vem se colocando desde os anos 90, quando se
começou a questionar a qualidade dos livros didáticos. Em 2007, a
revista Veja publicou uma reportagem sobre esse tema e, depois, o
jornalista Ali Kamel escreveu um artigo denunciando o suposto caráter
doutrinário dos livros didáticos. Essa conversa começou a ganhar corpo a
partir daí.
Hoje, nós temos uma disputa. O ambiente político brasileiro está
muito polarizado e há um crescimento muito expressivo de um campo
político conservador que saiu do armário. As pessoas não têm mais
qualquer receio ou pudor de assumir posições políticas de direita. Esse
fenômeno cresceu bastante na última década, o que é possível perceber
inclusive no campo editorial. Algumas editoras passaram a publicar, em
língua portuguesa, obras de autores conservadores como Roger Scruton,
Thomas Sowell e Russell Kirk, entre outros. Autores conservadores
brasileiros também começaram a ganhar notoriedade como Olavo de
Carvalho, Rodrigo Constantino, Bruno Garschagen e Flávio Morgenstern.
Independentemente de eu concordar ou não com as ideias e posições
políticas desses autores, elas são absolutamente legítimas, mas eles se
colocam no debate público de uma forma bastante agressiva, utilizando um
caminho jurídico para tentar constranger professores que, segundo eles,
têm uma postura doutrinária. Se prevalecerem as ideias dos defensores
de propostas como a da Escola sem Partido, ficaria muito difícil, por
exemplo, um professor de Biologia trabalhar com o evolucionismo porque
isso feriria valores familiares. Se os pais são cristãos, eles
esperariam que o filho recebesse numa escola pública também uma
explicação criacionista para a origem do mundo. Uma questão de fé é uma
questão privada. Nós não podemos equivaler um discurso mítico, religioso
e simbólico a uma discussão de natureza acadêmica. Não são coisas que
podem ser equiparadas, ao meu ver.
“A
discussão proposta pelo projeto da Escola sem Partido é marcada pela
falta de base. Os seus proponentes têm muita dificuldade de definir o
que é doutrinação, o que é ideologia”. (Foto: Joana Berwanger/Sul21)
Sul21:
Na sua avaliação, quais são os principais problemas envolvidos neste projeto da Escola sem Partido?
Éder Silveira: O que incomoda muito neste projeto é a
tentativa de criar um factoide afirmando que as escolas são fábricas de
doutrinação. Um artigo publicado há alguns dias pelo deputado Marcel
van Hattem é um exemplo de como esse tema funciona como uma cortina de
fumaça. As escolas gaúchas estão ocupadas. Qual é a explicação dele? É
culpa do PT, do PSOL, da esquerda, do comunismo bolivariano. Faça-me o
favor… Na verdade, são escolas em situação precária, com baixo
investimento, um problema histórico das escolas no Rio Grande do Sul. Eu
fui aluno de escola pública nos anos 80 e conheço bem essa realidade.
Naquela época, a situação das escolas já era precária e, pelo que sei,
essa precarização não cessou. É por isso que os alunos estão ocupando as
escolas. Os estudantes também se manifestaram duramente em 2013,
durante o governo Tarso Genro. Não há base, portanto, para essa
afirmação do deputado Van Hattem. Aliás, me parece que toda essa
discussão proposta pelo projeto da Escola sem Partido é marcada pela
falta de base. Os seus proponentes têm muita dificuldade de definir o
que é doutrinação, o que é ideologia.
Em um livro chamado “Ideologia”, Terry Eagleton apresenta dezesseis
definições diferentes de ideologia em dezesseis autores diferentes.
Ideologia não é um conceito único. Um de seus pressupostos é que todo
discurso, mesmo aquele que almeja neutralidade, é atravessado por uma
ideologia, por uma forma de ver o mundo. É uma lente mediante a qual o
indivíduo se coloca no mundo e o interpreta. Não há a menor
possibilidade de imaginarmos que exista um tipo de discurso neutro. Essa
neutralidade não existe na ciência e muito menos nas ciências humanas.
Isso é absolutamente incompatível com todo o debate no campo das
ciências humanas no século XX, seja qual for a escola de pensamento que
escolhamos. Por outro lado, dizer que não há neutralidade não significa
defender a partidarização ou algo do tipo.
Há um artigo muito bom de Contardo Calligaris sobre esse tema,
publicado na Folha de S.Paulo. Calligaris é um crítico do PT, do governo
Dilma e da esquerda. Ele não é um bolivariano, portanto, e apresenta
uma crítica muito dura ao projeto da Escola sem Partido. Mesmo
articulistas mais de centro ou centro-direita como o próprio Contardo
Calligaris ou Hélio Schwartsman teceram críticas muito duras a esse
projeto, que é muito genérico. Ora, toda e qualquer discussão sobre um
tema que não seja consensual, e que aquilo que a escola ensina possa
mexer com convicções familiares, fatalmente fará com que o professor ou
professora sofram a acusação de um suposto crime de manipulação
ideológica. Esse é um discurso desprovido de qualquer racionalidade que
não condiz com a realidade das escolas. Aliás, é interessante observar
que a maioria dos seus proponentes não são professores e não conhecem de
perto o que acontece nas salas de aula.
Sul21:
Você conhece casos em que a liberdade de cátedra foi ameaçada por esse projeto ou por ideias análogas?
“As
escolas são plurais. Eu estudei em escola pública e tive professores de
direita, de esquerda e outros que não demonstravam interesse por
política”. (Foto: Joana Berwanger/Sul21)
Éder Silveira: Aqui no Rio Grande do Sul, ainda não
conheço nenhum caso desse tipo, mas me parece que tem ocorrido alguns
constrangimentos de professores, especialmente em escolas particulares.
Tomei conhecimento de um caso envolvendo um professor de uma escola
privada, onde o pai de um aluno teria descoberto que os filhos desse
professor teriam nomes de militantes históricos de esquerda e decidiu
constrangê-lo dizendo que estava “de olho nele” para evitar que ele
plantasse ideologia comunista na cabeça do filho dele, algo assim.
Curiosamente, o menino tinha o nome de um ditador de direita. Ou seja,
acusam os professores de fazer aquilo que eles fazem e que praticamente
todo mundo faz, que é ler o mundo através de uma determinada lente.
As escolas são plurais. Eu estudei em escola pública e tive
professores de direita, de esquerda e outros que não demonstravam
interesse por política. Tive professores ateus, católicos, umbandistas,
assim como ocorre na imensa maioria das escolas. Por que pessoas que não
têm qualquer intimidade com a docência acham que são mais aptas a falar
sobre o ensino do que professores que enfrentam os desafios da sala de
aula? Ou do que professores universitários que trabalham em cursos de
licenciatura, formando futuros professores? A carga horária de
disciplinas de didática, nos cursos de licenciatura, é bastante alta.
Devemos partir do pressuposto de que as pessoas saem minimamente
preparadas para trabalhar. É importante respeitar os professores.
Os defensores de projetos como o Escola sem Partido, quando
confrontados, têm muita dificuldade para explicar o que é, afinal, a
“doutrinação”. Isso ocorre porque a vagueza do projeto é um elemento
fundamental. Ele precisa ser vago para servir como instrumento para
constranger o professor. Por exemplo, falar sobre ideologia de gênero,
essa expressão horrível que criaram. Como assim, ideologia de gênero?
Quer dizer que trabalhar a diversidade em sala de aula muda a orientação
sexual dos alunos? Vendo os casos de violência contra a comunidade LGBT
e contras as mulheres, será mesmo que não devemos falar sobre gênero em
sala de aula? Eu acho esse projeto constrangedor. É um projeto
profundamente ideológico, arrogando para si uma posição de suposta
neutralidade e acusando todos que não concordam com ele de serem
ideológicos.
Sul21:
Esse projeto, no início, não era levado
muito a sério, mas parece que ganhou corpo nos últimos anos, sendo
objeto de algumas iniciativas legislativas, como as do deputado Marcel
van Hattem (PP), na Assembleia Legislativa, e do vereador Valter
Nagelstein (PMDB), que quer proibir os professores da rede pública
municipal de Porto Alegre de “emitir opinião em sala de aula”. Parece
que essas ideias ganharam um maior eco com a onda conservadora…
Éder Silveira: Sim. Como eu disse no início da nossa
conversa, o campo conservador ganhou muito espaço na sociedade. As
bancadas conservadoras nos legislativos, em nível municipal, estadual e
nacional, ganharam espaço. A chamada bancada BBB (da Bíblia, da bala e
do boi) cresceu muito politicamente. Socialmente falando, cresceu a
adesão de jovens a uma ideologia conservadora. As editoras estão
investindo na publicação de autores conservadores. Há uma entrevista
interessante do Carlos Andreazza, neto do ministro dos Transportes da
Ditadura, Mário Andreazza. Ele é editor da parte de não ficção da
editora Record e é o responsável por publicar autores como Olavo de
Carvalho, Rodrigo Constantino, Marco Antônio Villa, entre outros. Nesta
entrevista, de julho de 2015, para o site G1, ele fala que essas edições
têm alcançados números expressivos, como 150 mil exemplares vendidos
pelo Olavo de Carvalho, 50 mil vendidos pelo Rodrigo Constantino. Para o
mercado editorial brasileiro, são números bastante expressivos.
“Nós
temos um movimento intelectual de valorização de um pensamento
conservador e uma articulação desse movimento com as bancadas
parlamentares conservadoras”. (Foto: Joana Berwanger/Sul21)
Durante muito tempo se entendeu no mercado editorial que livro de
direita não vende e que livro de esquerda vende porque a esquerda lê
mais do que a direita. Carlos Andreazza decidiu navegar na contramão
dessa ideia apostando que esses autores de direita tinham apelo popular
e, por meio de uma boa estratégia de marketing, poderiam se transformar
em bons produtos. A Record investiu na publicação de vários desses
autores. Então, nós temos um movimento intelectual de valorização de um
pensamento conservador e uma articulação desse movimento com as bancadas
parlamentares conservadoras. Essa articulação ainda enfrenta certa
resistência no ambiente acadêmico, onde esse ideário conservador ainda
encontra menos eco. Até por isso, existe essa tentativa de forçar uma
entrada com esses projetos que visam, uma vez aprovados, silenciar
professores.
A visita do Alexandre Frota e do líder dos Revoltados Online ao
ministro da Educação foi para entregar um projeto desse grupo que tem
uma página que é alimentada com textos e documentos como modelos de
notificações para os pais denunciarem professores que estariam fazendo
“doutrinação ideológica” dentro das salas de aula. É um “projeto modelo”
que é replicado, com pouquíssimas adaptações, em todos os estados onde
houver um deputado disposto a apresentá-lo, como o van Hattem fez aqui
no Rio Grande do Sul, como tramitou em São Paulo e como foi,
recentemente, aprovado em Alagoas.
Essa iniciativa também não é inocente do ponto de vista econômico.
Importantes grupos editoriais perceberam, há muito tempo, que o melhor
comprador de livros no Brasil é o Estado. O mercado editorial alcança
altas cifras quando a editora consegue ingressar no universo dos livros
didáticos. Há coleções de livros didáticos que podem vender algo como
700 mil, um milhão de exemplares. O ataque feito em 2007 aos livros
didáticos pelo Ali Kamel está relacionado a este contexto. Há um
processo de cartelização dos grandes grupos de comunicação, como o Grupo
Folha, Estadão e Globo, que, percebendo que vender jornais não é um
negócio com muito futuro, passaram a se associar com editoras nacionais e
com grandes grupos editoriais estrangeiros. Eles também querem vender
livros didáticos para o governo. Como não foi aprovada uma lei de meios
que impedisse essa concentração de vários negócios nas mãos de um mesmo
grupo, eles usam todos os seus veículos – jornal, televisão, rádio,
internet, etc. – para entrar nesse mercado. E entram jogando pesado.
Tomemos o caso do livro atacado por Ali Kamel, em 2007, “Nova
História Crítica”, de Mário Schmidt. Eu até não considero ele um bom
livro, mas não pelos motivos que Kamel apresentou, acusando-o de ser um
instrumento de manipulação ideológica. Manipulação foi o que ele fez,
recortando as partes que o interessavam e esquecendo de mencionar o
resto. Ele cita a descrição que Schmidt faz das transformações
econômicas na União Soviética na época do stalinismo, e ele o faz com
acento positivo, mas esquece de citar o parágrafo onde o autor do livro
diz que houve perseguições políticas e os Gulag’s, condenando-os.
“O
mais curioso é que esse livro do Mário Schmidt foi ranqueado no governo
Fernando Henrique Cardoso e foi descredenciado no governo Lula”. (Foto:
Joana Berwanger/Sul21)
Cabe observar ainda que o livro didático é aprovado por um grupo de
trabalho formado por professores e pesquisadores de universidades do
Brasil inteiro, que são chamados pelo Ministério da Educação para dar
pareceres sobre os livros. O mais curioso é que esse livro do Mário
Schmidt foi ranqueado no governo Fernando Henrique Cardoso e foi
descredenciado no governo Lula. O maior problema do livro didático não é
a doutrinação ideológica que seus críticos alegam, mas sim o
descolamento que essas obras muitas vezes apresentam do ponto ao qual
chegou o debate sobre alguns temas dentro da universidade. Há um
descompasso da história pesquisada com a história ensinada. Esse, aliás,
é um descompasso antigo, não é algo recente.
Sul21:
Considerando o conceito de liberdade de cátedra em seu sentido mais amplo, quais são, na sua opinião, os seus possíveis limites?
Éder Silveira: Há uma recomendação da Unesco
estabelecendo que o professor tem autonomia para definir o que ele vai
ensinar e como ele vai ensinar, e que essa autonomia deve ser
preservada, como um fator importantíssimo para as democracias no mundo
inteiro. A nossa Constituição define a liberdade de cátedra como a
liberdade de ensinar, dando autonomia ao professor para decidir sobre o
melhor conteúdo e o melhor modo de abordar esse conteúdo em cada caso.
Projetos como o da Escola sem Partido atacam a liberdade de cátedra, não
é gratuito o apelido que ganhou, Lei da Mordaça. Cabe ao professor de
Biologia, por exemplo, definir o modo pelo qual ele vai ensinar a origem
da vida. Ele irá optar pelo evolucionismo, muito provavelmente, em
função de sua ampla aceitação neste campo de saber. Ele não deve ser
obrigado a levar em consideração todas as possibilidades de abordagem
sobre um determinado tema, sendo obrigado a trabalhar sob o ponto de
vista do criacionismo. Não em uma escola pública, ao menos. Em muitas
escolas mantidas por igrejas, sei que se desencoraja o ensino do
“evolucionismo” e se exige o ensino do criacionismo.
Esse me parece que é um ponto importante da liberdade de cátedra que
está sendo ameaçado por esse tipo de projeto que é vendido como sendo
plural. Ele não é plural, pois, em grande medida, constrange a liberdade
dos professores escolherem aquela que consideram a melhor abordagem
sobre um determinado tema. É um projeto tão genérico em sua redação que a
simples menção à teoria econômica marxista pode se transformar em
justificativa para uma denúncia e um processo contra um professor. Os
alunos não são tolos, sabem muito bem que o professor A pensa de um
jeito e o professor B pensa de outro. Para saber isso não precisa ser
pedagogo, basta lembrar o tempo da escola. Achar que tudo aquilo que o
professor diz é absorvido e aceito integralmente pelo aluno é algo
risível. Os alunos reagem ao que estão ouvindo, concordam, discordam,
assimilam ou não assimilam, filtram com suas próprias experiências de
vida. Os alunos não são esponjas que estão ali sentadas absorvendo tudo o
que recebem sem qualquer tipo de filtro. Segundo essa lógica, falar de
questões de gênero seria uma interferência indevida na sexualidade dos
alunos. Se o professor de Biologia falar de árvores, os alunos vão virar
árvores? Acreditar nisso é uma absoluta tolice.
A liberdade de cátedra é diferente da liberdade de expressão. A
primeira é da porta da sala de aula para dentro, a segunda, da porta da
sala de aula para fora. Fora da sala de aula o professor tem o direito
de se expressar como qualquer cidadão, do ponto de vista político,
ideológico, cultural etc. Isso não pode ser tolhido. Daqui a pouco o
fato de um professor estar conversando com um grupo de alunos no pátio
ou no corredor vai ser tratado como uma conspiração. Quem defende isso
está tentando reviver o clima do macarthismo, o que é absurdo, patético.
Além disso, se os professores são doutrinadores, eles são péssimos
doutrinadores, tendo em vista o número de jovens que vemos hoje
defendendo a volta da ditadura militar e excrescências políticas como
Jair Bolsonaro.
“Se
os professores são doutrinadores de esquerda, eles são péssimos
doutrinadores, tendo em vista o número de jovens que vemos hoje
defendendo a volta da ditadura militar”. (Foto: Joana Berwanger/Sul21)
Por outro lado, eu sou contra a política partidária dentro da sala de
aula, e imagino que a grande maioria dos meus alunos é testemunha
disso. Não é papel do professor pedir voto dentro da sala de aula ou
defender um candidato A ou B. Agora, é evidente que o mundo lá fora deve
ser interpretado e pensado pelos professores. Todos os nossos atos são
atravessados por uma dimensão política. O silêncio também é uma escolha
política. Assim como a falácia da neutralidade. Há o limite do bom
senso, que costuma ser um bom conselheiro. Já orientei alunos em
trabalhos de conclusão de curso cujo pensamento era conservador, e com
muita tranquilidade. O aluno me procurou sabendo que pensávamos
diferente, o que nos enriqueceu mutuamente. Isso é algo absolutamente
natural. Temos professores que defendem os mais variados pontos de
vista.
Essa guerra por corações e mentes vem sendo trabalhada na imprensa há
muito tempo. Em abril desse ano, Luiz Felipe Pondé publicou um texto
chamado “A história do Brasil do PT”, no qual afirma que, mesmo que o
impeachment dê certo e que o PT seja exterminado, a história do Brasil
vai continuar glorificando a esquerda porque essa história é contada
pela esquerda nas escolas e nas universidades. Esse discurso transforma o
professor no grande vilão, no grande responsável pelo suposto
descaminho dos jovens. É um discurso obscurantista, reacionário e que
faz coro às abomináveis aulas de Moral e Cívica e OSPB durante a
ditadura. Se essa lógica do Escola sem Partido fosse correta, se a
doutrinação na sala de aula fosse um processo de precisão matemática,
essas aulas deveriam ter garantido que a ditadura militar fosse
amplamente reconhecida e admirada até hoje.
Sul21:
Uma das iniciativas mais recentes dos
defensores do Escola sem Partido aqui no Estado foi o projeto (PL
124/2016) apresentado pelo vereador Valter Nagelstein (PMDB), que
pretende proibir os professores da rede municipal de Porto Alegre de
emitirem “opiniões de cunho pessoal que possam induzir
ou angariar simpatia a determinada corrente
político-partidária-ideológica”. Qual sua opinião sobre essa proposta?
Éder Silveira: Há muitos riscos envolvidos nesse
projeto. Tomemos como exemplo o vereador Valter Nagelstein, que defende a
“Escola sem Partido” e pede que todos os pontos de vista sejam levados
em consideração dentro da sala de aula, sem privilegiar uma determinada
visão, privilégio este que caracterizaria a “doutrinação”. O mesmo
Valter Nagelstein, há alguns anos, apresentou um projeto tornando
obrigatório, em todas as escolas da rede municipal de Porto Alegre, o
ensino e a discussão do Holocausto. E se, caso aprovado o projeto do
“Escola sem Partido”, um professor de história receber uma notificação
dos pais de um aluno que, sendo simpatizantes do nazismo ou defensores
de alguma teoria negacionista, exigem que o “ponto de vista” dos
Nazistas seja apresentado aos alunos, de modo equilibrado. Tenho certeza
de que Nagelstein, assim como qualquer pessoa de bom senso, seria
radicalmente contra isso, seria contra colocar os argumentos
negacionistas em pé de igualdade com todas as críticas já feitas ao
horror do nazismo e do Holocausto. Esse projeto é tão vago que, na
verdade, pode abrir a caixa de Pandora. Eu não sei se eles sabem como
farão para fechá-la depois de aberta.