“Não há mais espaço no mundo para esse tipo de visão, que estimula o desenvolvimento sem salvaguardas ambientais”, aponta o biólogo.
Confira a entrevista.
A plantação de cana-de-açúcar para a produção de etanol está modificando a geografia e as terras do cerrado brasileiro, porque os investidores “buscam áreas já desmatadas, com solo corrigido e pronto para o plantio”. A expansão da monocultura, segundo Machado, força, indiretamente, o deslocamento do gado para outras regiões do país. Esse deslocamento e a concentração da pecuária em determinadas regiões também causa prejuízos ambientais, pois essa “é uma atividade que requer a degradação do ambiente, onde todas as espécies nativas são eliminadas para dar lugar a basicamente o capim e o boi”, esclarece.
De acordo com ele, atualmente somente “3% da área natural do Cerrado está protegida sob a forma de unidades de proteção integral (parques, reservas biológicas e estações ecológicas. Muitas delas estão ameaçadas não somente pela falta de implantação, mas também pela redução da área protegida, como é o caso do Parque Nacional da Serra da Canastra (MG)”.
Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, o biólogo enfatiza que os principais impactos sociais e ambientais do Cerrado estão relacionados à concentração de terras, “pois pequenos produtores dão lugar aos latifundiários. Na parte ambiental, os maiores impactos estão na redução de áreas nativas”. Caso o novo texto do Código Florestal seja aprovado, assegura, a situação ambiental do bioma poderá piorar por conta da “desobrigação de recuperação das áreas já desmatadas. No caso da parte sul do Cerrado, a mais ocupada, isso seria uma tragédia, pois várias populações de espécies típicas do bioma não conseguirão se manter no longo prazo sem ás áreas nativas adequadas”.
Ricardo Machado é biólogo formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-MG, mestre em Ecologia, Conservação e Manejo de Vida Silvestre pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, e doutor em Ecologia pela Universidade de Brasília – UnB. Atualmente é professor do Departamento de Zoologia da UnB.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como as plantações de cana-de-açúcar e eucalipto estão modificando a geografia e as terras do cerrado brasileiro? Essas culturas são apropriadas para o solo do bioma?
Ricardo Machado – Ambas as culturas são plantadas no esquema de monocultura de grandes extensões. A diferença é que a cana-de-açúcar é plantada nas proximidades de uma usina de produção de álcool (dentro de um raio de 35 km). Assim, basta mapear onde estão as usinas que será possível ver onde está a cana-de-açúcar. No caso do eucalipto, a plantação pode estar mais longe do centro de processamento da madeira. Em princípio, a maior parte dos cultivos que suporta um clima com forte sazonalidade (períodos de chuva e seca bem definidos) podem ser implantados no Cerrado. Mesmo a soja, que é uma espécie originalmente de clima temperado, pode ser plantada no Cerrado após o desenvolvimento de variedades adaptadas ao clima.
IHU On-Line – Desde quando as plantações de eucalipto e cana-de-açúcar foram intensificadas no Cerrado? Elas têm empurrado o gado para quais regiões?
Ricardo Machado – As plantações de eucalipto não têm provocado esse efeito de deslocamento do gado. No entanto, existem fortes indícios de que a substituição de áreas de pastagem (ou mesmo de soja) tem provocado um deslocamento do gado. Os investidores na produção de etanol a partir da cana-de-açúcar normalmente buscam áreas já desmatadas, com solo corrigido e prontas para o plantio. De maneira direta, a expansão da atividade não causa desmatamentos, mas indiretamente o cultivo força o deslocamento do gado para outras regiões (observamos uma movimentação do de regiões como São Paulo, Triângulo Mineiro e Goiás para o oeste da Bahia e norte do Mato Grosso).
IHU On-Line – Quais as implicações da pecuária nos ecossistemas, especialmente na Amazônia?
Ricardo Machado – A pecuária é uma atividade que requer a degradação do ambiente, onde todas as espécies nativas são eliminadas para dar lugar a basicamente o capim e o boi. A lotação normal do gado no Brasil é de uma cabeça por hectare. Só de plantas na Amazônia são observadas 400 espécies por hectare. O modelo da pecuária é incompatível com a manutenção da floresta e até hoje o Brasil não desenvolveu um modelo econômico que seja capaz de explorar os recursos naturais de maneira inteligente e sustentável.
IHU On-Line – Como é feito o manejo e o plantio de culturas como eucalipto e cana-de-açúcar no Cerrado?
Ricardo Machado – De um modo geral o eucalipto é manejado em ciclos de 6/6 anos para a produção de carvão, ou 8/8 anos para a produção de celulose. Os impactos no solo são menores, pois o mesmo não é revirado com frequência. No caso da soja, as safras são anuais e de 6/6 meses o solo é revirado e fica esperando (nas regiões que não fazem a ‘safrinha’, ou seja, o plantio de um cultivo intermediário).
IHU On-Line – O senhor declarou recentemente que até 2011, em função da criação das reservas, havia uma proteção interessante do Cerrado, mas que ela tende a diminuir. Que percentual do Cerrado está protegido? A monocultura é a causa da diminuição da proteção?
Ricardo Machado – Atualmente apenas 3% da área natural do Cerrado está protegido sob a forma de unidades de proteção integral (parques, reservas biológicas e estações ecológicas). Muitas delas estão ameaçadas não somente pela falta de implantação, mas também pela redução da área protegida, como é o caso do Parque Nacional da Serra da Canastra (MG) e algumas áreas no estado do Mato Grosso. Há também o perigo da redução das áreas protegidas na Amazônia para dar lugar às hidrelétricas. Veja o projeto de Lei que está em tramitação no Congresso: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=533535
IHU On-Line – Vislumbra uma condição de vulnerabilidade econômica, social e ambiental em função da produção de monoculturas no Cerrado?
Ricardo Machado – Um dos impactos sociais mais conhecidos é a concentração de terras, pois pequenos produtores dão lugar aos latifundiários. Na parte ambiental, os maiores impactos estão na redução de áreas nativas (poucas são as propriedades que mantêm Reservas Legais – RL e Áreas de Preservação Permanente – APPs de modo adequado), o isolamento dessas áreas (que provoca a perda da dinâmica natural das espécies se dispersarem na paisagem) e na contaminação de cursos d’água (pelo uso intensivo de pesticidas e fertilizantes).
IHU On-Line – Como avalia a política ambiental do governo federal? Pode-se dizer que política desenvolvimentista de incentivos à expansão da monocultura, à criação de gado, à construção de hidrelétricas, prevalece se comparada com os incentivos para a preservação?
Ricardo Machado – Particularmente, considero a política ambiental no Brasil razoavelmente boa, mas costuma ficar na intenção. Existem várias políticas antagônicas dentro do governo que dificultam os avanços necessários. Por exemplo, de acordo com o Código Florestal, as APPs deveriam ser mantidas, mas ao mesmo tempo o IBAMA tinha um projeto chamado de Pro-Várzea que estimulava a ocupação dessas áreas. No Brasil áreas naturais possuem um crucial papel na conservação da biodiversidade, mas são consideradas improdutivas e o imposto rural é mais elevado. Outro exemplo: se um proprietário desejar recuperar uma área degradada vai ter dificuldade de encontrar linhas de financiamento nos bancos públicos. Contudo, linhas de financiamento para o plantio e a exploração econômica existem à vontade.
IHU On-Line – Que políticas públicas são necessárias para garantir a preservação do Cerrado brasileiro?
Ricardo Machado – De uma forma geral precisamos de políticas menos conflitantes, que valorizem o uso dos recursos naturais e que façam a correta divulgação sobre a importância do Cerrado para a biodiversidade brasileira e para importantes serviços ambientais, como a manutenção da disponibilidade de água.
IHU On-Line – Caso o novo texto do Código Florestal seja aprovado, quais as implicações para a preservação do Cerrado e da Amazônia?
Ricardo Machado – Uma das perspectivas da aprovação do Código é a desobrigação de recuperação das áreas já desmatadas. No caso da parte sul do Cerrado, a mais ocupada, isso seria uma tragédia, pois várias populações de espécies típicas do bioma não conseguirão se manter no longo prazo sem ás áreas nativas adequadas. Um exemplo disso é a situação do tatu-canastra, o maior representante do grupo e que ocorre no Cerrado. As populações que existiam no estado de São Paulo já desapareceram e a espécie é considerada extinta localmente (ocorre em outros estados, mas em São Paulo não ocorre mais).
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Ricardo Machado – Talvez um ponto importante a ser mencionado é que as instituições que lidam com o desenvolvimento econômico do Cerrado, como a Embrapa, deveriam ser repaginadas. Uma nova missão deve ser dada a esse órgão para tentar desenvolver técnicas de aproveitamento econômico de espécies nativas sem a degradação ambiental, como vem sendo feito desde a década de 1970. Não há mais espaço no mundo para esse tipo de visão, que estimula o desenvolvimento sem salvaguardas ambientais.
(Ecodebate, 21/05/2012) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]