De sitiante a semeador de florestas . Guaraci Diniz recompôs 80% da mata de seu sítio e criou a primeira RPPN de Amparo (SP); hoje, obtém da propriedade 87% do que precisa para viver
Há quatro anos, em uma pequena parcela do Sítio Duas Cachoeiras, de 30 hectares, em Amparo (SP), região de Campinas, despontavam, numa área que antes era pasto degradado, mudinhas de árvores nativas recém-plantadas. As espécies que compuseram o reflorestamento da vez – assim como das várias outras vezes – foram escolhidas de maneira curiosa: com o Cartório de Registro de Imóveis de Amparo, em antigas escrituras de terras da região. O proprietário do sítio, Guaraci Diniz Júnior, lembra da busca, feita em parceria com o historiador Roberto Pastana Teixeira Lima. “Acidentes naturais, como rios e montanhas, eram usados para demarcar o limite das propriedades”, comenta. “E também árvores.” Matéria de Tânia Rabello, em O Estado de S.Paulo.
Assim, sabia-se que, do angico branco, contando-se cem passos, até a margem do Rio Camanducaia, tinha-se parte do limite de uma fazenda. De lá, virava-se à esquerda, chegando ao jequitibá-rosa, próximo à paineira. A candeia ficava ali, encostada numa grande rocha oval, e também servia como ponto de demarcação de limites. “Detectamos, nesses registros, cerca de cem espécies de árvores ocorrentes na vegetação da região”, diz Diniz, que pôde recompor o histórico florestal de uma área bastante desmatada.
As mudas nativas Diniz vem obtendo, nos 25 anos em que já faz esse trabalho de recomposição florestal, de várias maneiras. Por meio de um pequeno viveiro próprio, e também do Consórcio das Bacias dos Rios Piracicaba-Capivari-Jundiaí; de parcerias com viveiristas e até com empresários interessados em neutralizar as emissões de carbono, financiando o plantio de árvores nativas dentro do Programa Estadual de Microbacias da Secretaria de Agricultura paulista.
O plantio e a manutenção das mudinhas plantadas há quatro anos – 5 mil, no total, em 4,8 hectares – foram bancados voluntariamente pelo empresário Samuel Lopes de Oliveira, dono de uma gráfica em Santo André (SP), que com isso neutralizou no mínimo 40 toneladas de carbono/ano, levando-se em conta todas as atividades da gráfica.
Há quatro anos eram mudinhas isoladas numa árida área de pasto. Agora, ao revisitá-las e vê-las a meio caminho de se transformarem numa densa floresta, só dá para parafrasear Pero Vaz de Caminha: “Nesta terra, em se plantando, tudo dá”. Em 2009 foram mais 2 mil mudas e, recentemente, Diniz plantou 4 mil, em 4 hectares. Em breve, mais um trecho de mata surgirá.
Há dois anos, parte da área florestal, 6,3 hectares, transformou-se na primeira Reserva Particular do Patrimônio Natural da região, a RPPN Sítio Duas Cachoeiras. E assim permanecerá intocada, independentemente de o sítio mudar de dono ou não.
Vida orgânica. Guaraci Diniz seria um sitiante como qualquer outro que precisasse ou quisesse reflorestar sua propriedade, não fosse o propósito que se incumbiu – ou foi incumbido, por força das circunstâncias -, de tentar viver o mais organicamente possível. “Sou de São Paulo. Quando vim para o sítio, foi para morar mais perto da faculdade, que fazia em Campinas”, diz. “Quando a gente vem morar numa propriedade rural e percebe todas as necessidades do local, começa a pensar em como atendê-las, não necessariamente gerando receita, mas sobretudo sem gerar despesa.”
Adubos verdes. Começou por cultivar o próprio alimento. E a pesquisar como fazê-lo da maneira mais saudável e menos custosa possível – sem o uso de adubo químico e agrotóxicos -, só fertilizando a terra com o que a própria natureza oferece, como adubos verdes, obtidos dos próprios restos de culturas. Foi se enfronhando no universo da agroecologia e partiu para a agrofloresta, cultivo que tenta imitar a biodiversidade de uma floresta tropical ou é feito dentro da própria mata. Então, além do alimento, começou a formar uma floresta que abrigasse as plantas cultivadas.
Hoje o Sítio Duas Cachoeiras tem 80% de sua área reflorestada. São 7 hectares de mata com mais de 50 anos, que já existiam, e mais 17 hectares de floresta reintroduzidos por Diniz.
O resultado do trabalho foi aparecendo. “De uma nascente e meia – porque uma secava no inverno -, hoje tenho cinco, com água abundante.” Seu modo de vida mudou e a sustentabilidade do sítio pôde ser provada em números. Há dez anos, o Laboratório de Engenharia Ecológica e Aplicada da Unicamp calculou o índice de sustentabilidade do Sítio Duas Cachoeiras: 87%.
Ou seja, 87% das necessidades da propriedade são atendidas ali, desde alimentos até energia – painéis solares dão conta do aquecimento da água e de fornecimento de eletricidade, além de rodas d’água instaladas no ribeirão que corta a propriedade e forma duas cachoeiras. “É o que se consegue quando se trata a terra como um organismo; nós fazemos parte dele”, ensina. O aprendizado desses anos se transformou em consultorias, que presta não só na região, mas aos interessados de todo o País, ensinando a quem quiser sobre manejo agroecológico de sítios, recomposição florestal, sementes e agrofloresta.
Outro estudo feito no sítio, também da Unicamp, detectou a importância da manutenção ou recomposição da cobertura vegetal nas áreas rurais para a produção de água limpa e abundante para a população. “Com a floresta recomposta, contribuímos com o aumento da capacidade de abastecer de água de excelente qualidade o distrito de Arcadas, em Amparo”, garante. Esse estudo demonstrou que somente a área reflorestada no sítio produz o equivalente a 1,5% da água necessária para o abastecimento da área urbana de Amparo.
Em um terceiro estudo, o pesquisador Thiago Roncon, da Universidade Federal de São Carlos, provou que floresta em pé vale mais que soja, por todos os benefícios econômicos e ambientais ao entorno. “Quando se fala em pagamento por serviços ambientais, como querem os governos federal e estadual, essas contas deveriam ser levadas em consideração. Os benefícios que uma propriedade preservada gera para a comunidade são infinitamente maiores que os R$ 200 por hectare que o governo estadual se propõe a pagar para os produtores.”
Antes e depois. Nas fotos que mostram o antes e o depois do sítio, é patente a transformação da paisagem. De pastos degradados – cenário ainda presente nas propriedades vizinhas -, o sítio virou oásis. Literalmente, pois no período seco é comum vizinhos virem lhe pedir água para dar às criações ou às lavouras, ainda tratadas convencionalmente e com nascentes intermitentes.
“Infelizmente, os agricultores do entorno ainda adotam práticas convencionais, com adubos químicos e agrotóxicos e sem controle da erosão.” Assim, não é possível evitar a contaminação do Ribeirão do Mosquito, que divisa a propriedade e faz parte de área de preservação de mananciais.
Hoje Diniz ainda mantém uma pequena área de pasto rotacionado para cerca de 30 ovelhas e 6 cavalos. “Todos os animais aqui morrem de velhos”, diz o sitiante, que teve um cavalo que viveu surpreendentes 31 anos. As ovelhas hoje contribuem para a retirada da lã, que a mulher de Guaraci, Cecília, usa para fazer tapetes e tecidos em cursos de tecelagem, com corantes naturais, tirados de plantas como urucum, barbatimão, anileira e curcuma.
O próximo passo agora é garantir a viabilidade da RPPN, atraindo investidores socioambientais interessados em contribuir com o plano de manejo, que todo proprietário de reservas do gênero tem de fazer. “Assim manteremos as atividades de educação ambiental com escolas e de visitas de pesquisadores interessados em conhecer mais a fundo o nosso trabalho”, diz. “Eles sempre constatam que, se bem tratada, a terra responde, e rápido.”
EcoDebate, 11/09/2012