quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Transporte Individual: Contra-Mão, Beco sem Saída, Fim da Linha! artigo de Alexandre Costa


Há números que correm em paralelo aos recordes do clima e que com estes se entrelaçam. Vão da demanda e do uso de energia, ao consumo de agrotóxicos e fertilizantes; da extinção de espécies e perda de biodiversidade aos acidentes de trânsito; da área perdida de florestas à quantidade de rios represados; enfim, à concentração de CO2 atmosférico e demais gases de efeito estufa. Se forem feitos gráficos dessas variáveis em função do tempo, a marca comum a todas elas é o crescimento acelerado, ou, como é ensinado nos bancos escolares, um crescimento em progressão geométrica ou exponencial.

Neste texto, abordarei recordes e curvas exponenciais visíveis para qualquer pessoa que passa pelas ruas e avenidas de qualquer grande cidade brasileira (ou, na verdade, da ampla maioria de grandes cidades do mundo). Referem-se ao trânsito, uma das arenas de um dos fenômenos paralelos ao aquecimento global: o enlouquecimento global.
 
Total de Automóveis no Brasil, de 1998 a 2012. Dados disponíveis em  http://www.denatran.gov.br/frota.htm.
 
Em Maio do ano que se encerrou, em função de uma paralisação dos metroviários, São Paulo experimentou uma marca inédita em matéria de engarrafamento: 249 km de vias travadas. Tratou-se evidentemente de uma excepcionalidade, mas quem habita qualquer uma das grandes cidades brasileiras, seja a capital paulista ou o Rio, Recife, Fortaleza, Salvador e mesmo moradores de cidades médias já vivenciam no seu dia-a-dia o desgaste físico e emocional dos congestionamentos diários. As mais de 40 mil mortes anuais no trânsito brasileiro não merecem outra qualificação que não tragédia, para não falar dos inúmeros acidentes não-fatais, mas que deixam sequelas e pressionam as emergências dos hospitais em um sistema de saúde bastante combalido.

A frota brasileira de veículos automotores tem crescido exponencialmente. Apesar de o crescimento mais acelerado hoje em dia ser o de motocicletas, é preciso chamar atenção para o consistente aumento da frota de automóveis de passeio. Os dados são mostrados ao lado, com o total de automóveis sendo referente ao final do ano, com exceção de 2012, no qual aparecem os dados até o mês de outubro. De 1999 para cá, o número desses veículos cresceu sempre em torno de 6,5% (menor crescimento, de 5,3%, entre 2002 e 2003 e maior crescimento, de 7,7%, entre 2008 e 2009).
 
Evolução do número total de veículos automotores, automóveis de passeio e motocicletas no Brasil, de 1998 a (outubro de) 2012.
Fonte: http://www.denatran.gov.br/frota.htm.

Mesmo que a frota passasse a crescer em progressão aritmética, isto é, linearmente, é fácil constatar pela tabela que nossas ruas ganhariam 5 milhões de carros a cada dois anos, extrapolando os dados de 2010 para cá. Isso seria suficiente para chegarmos ao final da década com 20 milhões de carros a mais, atingindo uma frota de impressionantes 62 milhões de automóveis de passeio. Mas usando uma ferramenta simples, é possível ajustar os dados a uma função mais realista, que reproduz com mais fidedignidade a aceleração contínua do crescimento da frota brasileira. E extrapolando a fórmula obtida, os números assustam. Chegaríamos em 2020 com nada menos do que 68 milhões de carros nas ruas, um incremento em 8 anos equivalente ao verificado na última década e meia. Mantendo-se esse padrão, de duplicar a frota a cada 11 anos, 2026 seria o ano em que chegaríamos a 100 milhões de automóveis “de passeio” (na verdade esse termo se tornaria uma contradição completa, pois com menos da metade desse total, o desfile quase imóvel de carros em nossas ruas congestionadas já merece ser chamado de qualquer coisa, menos “passeio”…).

Mundialmente, 23% das emissões de gases de efeito estufa estão associados ao transporte, sendo 3/4 desse montante, devidos ao transporte rodoviário. O Brasil, de acordo com o seuinventário de emissões de gases de efeito estufa, ainda possui emissões predominantemente associadas à mudança no uso e ocupação do solo e perda de florestas, no entanto, o transporte rodoviário em nosso País respondia, em 2005, por 7,8% das emissões brasileiras de CO2. Isto equivale a emissões maiores do que as de todo o parque industrial brasileiro e a mais do dobro do que era então emitido para geração de energia elétrica (em função da participação minoritária de térmicas a gás e carvão em nossa matriz energética). Ainda que esses dados provavelmente tenham mudado de 2005 para cá, não deve ser surpresa o aumento do peso do setor de transportes e, em particular, dos automóveis particulares nas emissões brasileiras. Uma frota duplicada, a princípio, emite o dobro.
 
Evolução do consumo de Etanol e Gasolina de 2003 a 2012.
Fonte: http://infopetro.wordpress.com/, a partir de dados da ANP
 
A figura ao lado mostra que o consumo de gasolina em nosso país manteve-se relativamente estável de meados de 2003 a meados de 2009, com o incremento da participação do etanol e a presença maior de carros bicombustível (“flex”). Mas o preço desfavorável ao consumidor, que passou a preferir abastecer seu automóvel com gasolina, levou, como se pode constatar, a uma escalada do uso deste combustível fóssil e à redução do “heroísmo” dos usineiros (que, evidentemente, preferiram se lambuzar no doce caminho dos preços elevados do açúcar no mercado internacional).

A queima de óleo diesel ainda é a principal fonte de emissão de transportes no Brasil, mas mesmo a euforia em substituir a gasolina pelo etanol (que levou Lula a chamar os usineiros de “heróis”) mostrou-se de curtíssimo alcance. A princípio, é óbvio que o etanol e os demais agrocombustíveis são menos danosos ao clima, pois o carbono é reciclado. Quando a cana-de-açúcar ou plantas oleaginosas crescem, sequestram CO2 que é produzido nos motores a combustão. No entanto, o próprio transporte desse combustível (feito usualmente em veículos a diesel) e o desmatamento, comumente associado à expansão da fronteira agrícola já mostram que eles não são nenhuma panacéia. Além disso, sabe-se muito bem de quão brutal é a exploração da força de trabalho nos canaviais e usinas e que impactos ambientais envolvendo os efluentes das usinas bem como o uso de fertilizantes, herbicidas e pesticidas são bastante significativos, deixando os agrocombustíveis com um grande custo sócio-ambiental. Mesmo com sérios comprometimentos à segurança alimentar e com agressões ainda maiores às florestas, portanto, sabe-se que seria impossível sustentar uma frota de automóveis com crescimento acelerado com base neles.
 
Protótipo de carro a ar comprimido
 
Claro, há alternativas tecnológicas possíveis à queima de combustíveis fósseis e aos próprios motores a combustão. As tecnologias de motores elétricos, uso de hidrogênio ou até alternativas mais inusitadas como o ar comprimido, que estão à mão podem contribuir para fugirmos da gasolina e demais derivados do petróleo, o que asseguraria menos emissões, junto com o aumento da eficiência dos próprios motores a combustão, redução do peso e cilindrada dos automóveis e a substituição parcial dos combustíveis fósseis por agrocombustíveis. Evidentemente não faria sentido que as baterias de carros elétricos, nesse contexto, fossem carregadas com eletricidade gerada por termelétricas a carvão ou a gás natural (o mesmo raciocínio vale para as células de hidrogênio ou para os compressores de ar). Mas mesmo que somente fosse utilizada eletricidade oriunda de fontes renováveis para estes fins, será que teríamos uma alternativa viável, globalmente sustentável e socialmente equânime, baseada no transporte individual? Como não pensar nos limites de como produzir, como trafegar, onde estacionar, etc., etc., etc.?
 
Ônibus movido a Hidrogênio
 
A produção industrial, mesmo desses carrinhos simpáticos tem impactos que não podem ser desprezados. Envolve mineração, transporte de matéria-prima, processamento químico, uso de metais raros, consumo de energia, etc. Como as dimensões de nossas cidades, o uso de matéria-prima e até mesmo o aproveitamento de recursos energéticos renováveis tem seus limites, a aposta deveria ser outra, sendo preciso, portanto, colocar o dedo na ferida. O transporte coletivo precisa ser privilegiado em detrimento do transporte individual. Cidades congestionadas são uma manifestação de total ineficiência (gasta-se mais energia, seja via queima de combustíveis fósseis ou não) para se locomover cada vez menos no mesmo intervalo de tempo. Mas a saída do “conforto” do transporte individual só se mostrará atraente mediante uma alternativa concreta de locomoção. Programas de tarifação zero e de melhoria da qualidade do transporte público, em conjunção com restrições ao uso do transporte individual são a mistura adequada de doce e amargo para garantir a virada necessária para impedir a crescente inviabilização dos assentamentos urbanos. Há que se assegurar, igualmente, a possibilidade de uso de outros meios de transporte, como a bicicleta, podendo combiná-la com outros meios de transporte (como ônibus e metrô). Faixas exclusivas, cobrança de estacionamento em via pública via parquímetro, rodízios e pedágios urbanos entram como acessórios. Algo que também é necessário apostar é na própria possibilidade de se trabalhar, estudar, etc. a partir de casa, sem deslocamento envolvido. Isso tudo precisa ser objeto de política pública, tanto em função da escala do problema quanto pelo fato de que, sem alternativas viáveis, não se pode esperar inflexões profundas com base em “conscientização” e decisões individuais.

Dentre os chamados “setores produtivos”, que promovem aquecimento e enlouquecimento globais, está a indústria automobilística. Se continuarmos acelerando o crescimento da frota de veículos automotores, o que é favorecido com medidas governamentais que atendem aos interesses dessa indústria e da indústria petroquímica, sem análise de impacto geral sobre a sociedade, o fim da linha (ou melhor, a linha completamente congestionada) está próximo. As políticas públicas têm de atuar no sentido de extinguir esses setores. A redução do IPI para automóveis de uso individual, portanto, está na contra-mão da história, da sociedade, do clima. É um privilégio desnecessário para um setor que se diz “produtivo”, mas que em essência é destrutivo e que chantageia governo e sociedade ao colocar os empregos dos “seus” trabalhadores sob a guilhotina, que é sabidamente nocivo para o conjunto da sociedade a médio e longo prazos. É preciso proteger os empregos dos trabalhadores desse setores, mas através de programas públicos de treinamento para atuação noutros segmentos.  Ou adota-se esse conjunto de ações interligadas, que requerem decisões firmes por parte do poder público, ou o legado das cidades será o de um verdadeiro inferno (congestionadas pelo excesso de veículos, poluídas pela escalada das emissões, alagadas pelas tempestades severas intensificadas pelo aquecimento global). Menos carros, menos engarrafamentos, menos stress, menos emissões de poluentes e de CO2… O que estamos esperando mesmo para dar meia-volta e deixarmos esse beco sem saída?

Alexandre Costa, Fortaleza, Ceará, Brazil, é Ph.D. em Ciências Atmosféricas, Professor Titular da Universidade Estadual do Ceará.
Artigo indicado pelo Autor e originalmente publicado em seu blogue pessoal [O que você faria se soubesse o que eu sei?] e republicado pelo EcoDebate, 09/01/2013

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