O debate em torno do consumo de crack em todo o país e a repercussão gerada na imprensa pela chamada “epidemia” do uso nas grandes cidades motivaram os pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) Paulo Amarante, coordenador do Grupo Temático de Saúde Mental da Abrasco, e Luis Eugenio de Souza, presidente da Abrasco, a escreverem um artigo sobre as medidas de repressão tomadas como “solução” para o consumo. O texto, que defende a abordagem do crack como questão de saúde pública, aponta que o passo inicial para o enfrentamento deve ser a identificação das determinações sociais do problema. “Exatamente aí é que se vê o maior equívoco e a maior contradição do enfrentamento. É uma questão de saúde, e não de segurança pública”.
Supostos usuários de crack fogem durante ação da Prefeitura do Rio (Foto: Gabriel de Paiva) |
Intitulado Crack: cuidar e não reprimir, o artigo aponta que os determinantes sociais devem agir sobre a origem estrutural do problema: a miséria, a desigualdade social, violência, carência de recursos e de investimentos do Estado nas comunidades nas quais o problema se localiza com maior peso, marcadamente com ausência de políticas educacionais e culturais que fixem as crianças nas escolas e fortaleçam os laços familiares e sociais. “São muitos os fatores que estão associados à questão da droga na sociedade, e não apenas a inclinação pessoal, ou seja, psíquica, das pessoas com dependência”.
Assim, os pesquisadores questionam a determinação para internar de forma compulsória os usuários de crack, e não a abordagem das determinações sociais, entendidas como “medidas imediatas e permanentes ou de cuidado e assistência efetiva das pessoas que fazem uso abusivo de drogas”. Para eles, insistir na ideia do recolhimento compulsório é o pior dos caminhos. “Além de ser uma medida considerada inconstitucional por especialistas do direito, é ineficaz como tratamento na medida em que a quase totalidade dos internados retornam imediatamente ao consumo da droga”, disseram. O artigo ainda comenta a estruturação dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), cuja aprovação da Lei nº 10.216/2001 modernizou a assistência à saúde mental no Brasil e regulamentou os Caps especializados no tratamento da dependência química.
Abaixo, o artigo na íntegra
Crack: cuidar e não reprimir
Paulo Amarante e Luis Eugenio de Souza
A questão do consumo de crack entrou com forte destaque na agenda nacional. É raro o dia em que a grande imprensa não aborde o assunto. E de fato, não há como negar que o uso de crack se tornou um problema de saúde pública. Exatamente aí é que se vê o maior equívoco e a maior contradição do enfrentamento do problema. É um problema de saúde e não de segurança pública.
Enquanto uma questão de saúde pública, o primeiro passo, como propõem especialistas do campo da saúde, é identificar as determinações sociais do problema. A miséria, a desigualdade social, a violência, a carência de recursos e de investimentos do Estado nas comunidades onde o problema se localiza com maior peso, marcadamente com ausência de políticas educacionais e culturais que fixem as crianças nas escolas e fortaleçam os laços familiares e sociais, são analisadores da origem estrutural do problema. Enfim, são muitos os fatores que estão associados à questão da droga na sociedade, e não apenas a inclinação pessoal, ou seja, psíquica, das pessoas com dependência. Desta forma, é de se estranhar que as soluções sejam de medidas de repressão, como a denominada “internação compulsória”, e não de abordagem das determinações sociais (que são medidas imediatas e permanentes) ou de cuidado e assistência efetiva das pessoas que fazem uso abusivo de drogas.
Embora o crack tenha assumido esta repercussão, não é de hoje que os mesmos segmentos sociais vêm apresentando problemas com o uso de drogas, desde o álcool (que ainda é o maior problema de saúde pública dentre as drogas), à cola de sapateiro, aos solventes, à maconha ou à cocaína. E isto ocorre há muito tempo sem que as políticas de saúde tenham feito algo sério a respeito. Desde o final dos anos 1980, vêm sendo estruturados Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Mais recentemente, após a aprovação da lei nº 10.216/2001, que modernizou a assistência à saúde mental no Brasil, foram regulamentados os Caps especializados no tratamento da dependência química. Em que pese a existência da lei e da regulamentação, os Caps têm sido implantados com extrema lentidão.
Do ponto de vista da saúde, não faz sentido, portanto, o forte propósito de estabelecer a internação compulsória ou involuntária. As formas, realmente efetivas, de cuidado e assistência às pessoas com dependência química são outras (Caps, Consultórios de Rua, estratégias de redução de danos, unidades psiquiátricas em hospitais gerias) e estão previstas na lei e nas normas do Ministério da Saúde. A questão é pô-las em prática. Medidas milagrosas não existem; trata-se de um problema grave e de difícil tratamento. Contudo, insistir na ideia do recolhimento compulsório é o pior dos caminhos. Além de ser uma medida considerada inconstitucional por especialistas do direito, é ineficaz como tratamento, na medida em que a quase totalidade dos internados retornam imediatamente ao consumo da droga.
Outro efeito negativo do recolhimento compulsório é tornar as instituições de internação locais de violação de diretos humanos. Com efeito, considerando que as pessoas internadas nestas instituições apresentam comportamentos rebeldes, tentativas de fugas, atos de violência contra os funcionários e demais internos, não é difícil imaginar a permanente tensão e as situações de conflitos que são sistematicamente criadas. Historicamente, as instituições fundadas em princípios de controle, disciplina e vigilância tiveram como resultado mais violência e muito pouco ou quase nada de recuperação moral como anunciavam.
Por fim, mas não menos importante, não é para se menosprezar as suspeitas levantadas por várias entidades e movimentos sociais, de que existem interesses não explicitados nesta “guerra ao crack”: a higienização e limpeza urbana apontam para interesses imobiliários e empresariais nos territórios “recuperados”; a internação compulsória revela um crescente e promissor mercado de instituições psiquiátricas hospitalares. Mais especificamente, crescem as “comunidades terapêuticas”, que representam, em geral, uma fraude, na medida em que nada têm de comunitárias nem de terapêuticas. Enfim, a internação compulsória significa um retrocesso da política de saúde mental, pois vem reforçar as instituições asilares, quando a lei prevê sua extinção e a construção de um modelo assistencial realmente terapêutico.
Informe Ensp, publicado pelo EcoDebate, 25/01/2013