Maria Conceição do Rosário, da Unifesp, fala sobre a importância de diagnosticar e tratar precocemente o Transtorno Obsessivo-Compulsivo em crianças (arq.pessoal)
Rituais fazem parte da rotina de qualquer criança pequena. Muitas fazem questão de ouvir sua história favorita antes de dormir, ou de dar boa noite para seus bichinhos de pelúcia e bonecas. Outras têm mania de contar árvores quando passeiam de carro ou evitam pisar nas divisões da calçada enquanto caminham.
Mas, quando esses comportamentos típicos da infância se tornam muito frequentes e começam a interferir na rotina ou a causar sofrimento, eles podem ser sintomas do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC).
Os casos em que a doença se manifesta antes dos 10 anos são classificados pelos especialistas como TOC de início precoce. Acreditava-se que, quanto mais cedo os sintomas aparecessem, pior seria a evolução do quadro, mas estudos recentes indicam que não é a idade de início o fator determinante para um mau prognóstico e sim o tempo que o paciente permanece sem tratamento.
O tema foi abordado por Maria Conceição do Rosário, professora da Unidade de Psiquiatria da Infância e Adolescência (UPIA) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), durante o World Congress on Brain, Behavior and Emotions, realizado no fim de junho, em São Paulo.
Rosário cursou doutorado em Psiquiatria na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), com
bolsa da FAPESP. Em seguida, fez pós-doutorado na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, como bolsista da Obsessive Compulsive Foundation e da Tourette Syndrome Association.
Em parceria com o professor Marcos Mercadante, Rosário fundou a UPIA, que hoje atende aproximadamente 500 crianças por mês. Foi coordenadora da unidade entre 2009 e 2010 e, atualmente, lidera os Ambulatórios de Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) e Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).
Também é membro do Consórcio Brasileiro de Pesquisa em Transtornos do Espectro Obsessivo-Compulsivo (CTOC) – que reúne quase 70 colaboradores de sete instituições em cinco estados brasileiros: São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Sul e Pernambuco – e do Consórcio Internacional de Genética do TOC.
Colabora em pesquisas vinculadas ao Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento (INPD), um dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia e Inovação (INCTs) apoiados pela FAPESP.
Em entrevista à Agência FAPESP, Rosário falou sobre a importância de diagnosticar e tratar precocemente crianças com TOC.
Agência FAPESP – Crianças pequenas tendem a gostar de repetições e rituais. Quando isso deixa de ser normal?
Maria Conceição do Rosário – Existem fases do desenvolvimento em que os rituais costumam ficar mais intensos e frequentes, como entre 2 e 5 anos de idade, durante a adolescência e no período pré-natal – um mês antes de dar à luz e nos três meses seguintes ao parto para mulheres e homens que se tornam pais. São períodos de transição na vida e os rituais ajudam a organizar a rotina e a deixar o indivíduo menos ansioso. No caso de crianças pequenas, os rituais costumam surgir na hora de comer, de dormir ou de tomar banho. Uma parte das pessoas pode manifestar sintomas obsessivo-compulsivos nessas fases, mas depois eles desaparecem. No entanto, isso pode significar que há uma predisposição. Esses são períodos de maior vulnerabilidade e, se o indivíduo passar por uma situação traumática ou estressante nessa fase, pode desenvolver a doença. Mas há uma diferença entre ter sintomas obsessivo-compulsivos e ter TOC. Essa diferenciação é feita com base em três fatores: o tempo que a pessoa gasta com os rituais e pensamentos obsessivos, a interferência que eles causam em sua rotina e o incômodo que eles provocam. Se a criança começa a se atrasar para atividades, deixa de brincar por medo de se sujar ou porque acha que aquilo vai dar azar, ou não consegue dormir se a mãe não contar a mesma história várias vezes do mesmo jeito e fica transtornada com a situação, pode ser um sinal de alerta. Mas quando não são muito frequentes, nem muito intensos, os sintomas obsessivo-compulsivos podem ser organizadores e auxiliar no desenvolvimento.
Agência FAPESP – Até quanto tempo por dia a manifestação dos sintomas seria considerada normal?
Rosário – Em geral, até uma hora por dia – somando todos os rituais e pensamentos obsessivos. No entanto, isso pode variar. Em alguns casos, por exemplo, pode durar apenas 40 minutos e causar um grande incômodo ou interferir muito na rotina. Isso já nos permite fechar o diagnóstico. É preciso considerar em que momentos do dia eles estão aparecendo, se existe um fator desencadeante e o que acontece quando a pessoa tem esses pensamentos. Ela fica mais tranquila ao fazer o ritual ou mais ansiosa? Fica muito incomodada? São parâmetros muitas vezes difíceis de avaliar. Na dúvida, os pais devem levar a criança para uma avaliação. Importante ressaltar que avaliar não significa tratar as crianças. Há casos em que apenas uma orientação e readequação da rotina já resolvem. A demora para diagnosticar e tratar, por outro lado, pode piorar a evolução do quadro.
Agência FAPESP – Por quê?
Rosário – Estudos anteriores diziam que o TOC de início precoce – antes dos 10 anos – era mais grave e tinha pior evolução do que os casos em que os sintomas começavam na idade adulta. Mas estamos descobrindo que não é a idade em que a doença se manifesta que faz a diferença e sim o tempo que a pessoa fica sem tratamento. Isso é o mais determinante. Há estudos de neuroimagem que mostram ocorrer uma alteração na neurotransmissão após o tratamento – tanto com medicamentos como com terapia comportamental. Uma das hipóteses é que, quanto antes for regularizada a neurotransmissão no cérebro, menos o desenvolvimento será comprometido. A segunda hipótese propõe que, quanto mais tempo a criança passa com sintomas obsessivo-compulsivos sem tratamento adequado, maior o risco de comprometimento da escolaridade, da sociabilidade, da autoestima e da maneira como ela se relaciona com os pais, com o mundo e consigo mesma. Quanto mais tempo ela passar com todas essas vivências, mais difícil será ter uma vida normal. Uma terceira hipótese para a pior evolução em pacientes com início precoce é a ocorrência de comorbidades. Quanto mais tempo sem tratamento, maior o risco de o paciente desenvolver transtornos associados, como depressão fobia social, ansiedade generalizada, dependências químicas, entre outros. Esse é um dos principais fatores de pior resposta ao tratamento.
Agência FAPESP – Quais são os transtornos associados mais frequentes?
Rosário – Quanto mais jovem for a criança, maior o risco de sofrer também de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), tiques e outros transtornos de ansiedade. Na idade adulta, a depressão é o mais frequente, chegando a atingir até 80% dos pacientes, segundo alguns estudos.
Agência FAPESP – Existe uma idade mínima para se fechar o diagnóstico de TOC?
Rosário – Não. No caso de transtornos do espectro autista, por exemplo, costuma-se esperar até os 3 anos para fechar o diagnóstico. Já para fazer o diagnóstico de TDAH, é preciso que os sintomas apareçam até os 12 anos. No caso do TOC não existe um parâmetro de idade. A doença pode se manifestar em qualquer faixa etária. O que precisa ficar claro é que TOC abrange quadros muito heterogêneos. Para tentar reduzir essa heterogeneidade e facilitar as pesquisas e o atendimento clínico, tentamos determinar possíveis subgrupos. Um desses subgrupos é o TOC de início precoce. É um quadro bem diferente daquele que surge apenas na idade adulta. A evolução do quadro vai depender do tipo de sintomas, do perfil da família, do tipo de tratamento a que a criança tem acesso. Mas, se não for tratado, certamente acabará se tornando um quadro mais grave. Outro fator preditivo de pior prognóstico é a gravidade dos sintomas logo que eles aparecem. Quanto mais intensos forem no início do quadro, pior é o prognóstico.
Agência FAPESP – Qual é a causa da doença?
Rosário – Há uma interação de fatores, genéticos, ambientais e neurobiológicos. Mas, independentemente da etiologia, a consequência é uma alteração funcional no cérebro. Atualmente, a hipótese mais aceita é que ocorram alterações da neurotransmissão nos circuitos córtico-estriato-tálamo-corticais. Todos os estudos indicam que esses circuitos estão comprometidos de alguma maneira. Mas não se trata de uma lesão, como no caso de um tumor ou um cisto. É uma mudança no funcionamento.
Agência FAPESP – Quais são os fatores de risco para o desenvolvimento de TOC?
Rosário – O fato de a criança ter pais com sintomas obsessivo-compulsivos ou com tiques é um fator de risco, pois sabemos que há uma predisposição genética e há uma associação de TOC com a síndrome de Tourette (transtorno neuropsiquiátrico caracterizado por tiques, espasmos ou vocalizações que ocorrem repetidamente da mesma maneira com considerável frequência). Situações estressantes vivenciadas pela criança também são fatores de risco. Uma situação traumática pode desencadear a doença, mas não necessariamente precisa ser algo trágico. Pode, por exemplo, ser apenas a mudança para longe de uma pessoa com quem a criança tinha forte vínculo, como um irmão que casou. Em adolescentes e adultos há alguns poucos estudos que falam sobre o uso de drogas. E a exposição a toxinas como chumbo, cigarro e álcool durante a gestação é fator de risco para qualquer patologia psiquiátrica.
Agência FAPESP – Como é feito o diagnóstico?
Rosário – O diagnóstico é fundamentalmente clínico. Por enquanto, não há exames que detectem o TOC. Existem algumas escalas e instrumentos de avaliação para monitorar a presença e a gravidade dos sintomas. Mas servem mais para monitorar sua evolução durante o tratamento e não para fazer o diagnóstico.
Agência FAPESP – Existem comportamentos repetitivos típicos da doença que ajudam no diagnóstico?
Rosário – Em geral, os mais frequentes são medo de contaminação e mania de limpeza, mania de arrumação e necessidade de que tudo esteja em ordem simétrica, pensamentos de agressão, medo de que possa ferir alguém ou ser ferido, medo de que algo ruim possa acontecer. Mas, na verdade, os pacientes com TOC podem ter apresentações muito variadas. O fato de não ter nenhum desses sintomas mais comuns não quer dizer que não seja TOC ou que seja um caso mais grave da doença. Outra característica do TOC na infância é que os sintomas obsessivo-compulsivos tendem a mudar ao logo do tempo.
Agência FAPESP – É algo que ocorre com tanta frequência que chama a atenção de quem convive com a criança?
Rosário – Há casos em que é preciso ser muito atento para perceber, pois frequentemente os pacientes escondem os sintomas. É comum os pais não notarem. O TOC não altera a capacidade de inteligência da criança e não faz com que ela perca a noção da realidade. Isso por um lado é bom, mas por outro pode dificultar o diagnóstico. A criança percebe que seu comportamento é diferente, é estranho, pode ficar com medo de acharem que ela é louca, de brigarem com ela, de não brincarem mais com ela. Se a família não souber lidar com os sintomas ou se acomodar a eles, pode piorar muito a evolução.
Agência FAPESP – Por que não é bom a família se acomodar?
Rosário – Há casos em que mães, pais, irmãos ou até cônjuges acabam fazendo todas as vontades do doente. Já tratei uma família que tinha duas máquinas de lavar em casa porque o adolescente não aceitava que as roupas dele fossem lavadas com as demais por medo de contaminação. Isso não é bom. Mas também não adianta simplesmente dizer para a família parar de fazer o que o paciente pede. É um processo de acompanhamento da família. Parte do tratamento diz respeito a ajudar a família a lidar com os sintomas do paciente. Brigar ou deixar de castigo, além de não ajudar, vai fazer a criança se abrir cada vez menos. Fazer tudo que ela quer também é ruim. Como o quadro é multifatorial, o tratamento precisa ser multimodal. Tem de abranger os pacientes e todas as pessoas que estão em volta, como familiares, professores. A criança passa boa parte do dia na escola, então tem que se conversar com a escola, com os professores e com os diretores. É preciso buscar estratégias para essa criança não sofrer bullying e não ser isolada do grupo.
Agência FAPESP – Como é o tratamento do TOC?Rosário – É baseado em um “tripé”: psicoeducação, psicoterapia e tratamento farmacológico. A psicoeducação, essencial no tratamento, consiste em orientar o paciente e seus familiares sobre os sintomas e sobre a melhor forma de lidar com eles. No Brasil, foi criada em 1996 a Associação de Portadores de TOC e de Síndrome de Tourette (
www.astoc.org), que desenvolve um trabalho pioneiro de dar apoio a familiares e a portadores, promover encontros de pacientes e, principalmente, divulgar informações atualizadas sobre esses transtornos. Em relação à psicoterapia, as técnicas comportamentais ou cognitivo-comportamentais têm maiores dados de eficácia. Quanto mais nova a criança, mais importante a presença dos pais no processo de psicoterapia. Nos casos moderados a graves, ou quando a psicoterapia não está disponível, recomenda-se o tratamento com medicações já aprovadas pelo FDA [
Food and Drug Administration, órgão do governo dos Estados Unidos], para o uso em crianças e adolescentes.