Milton Kuelle começou ainda jovem na Baixada, fez história no Olímpico e será chamado para atuar na futura Arena. 'Quero 20 minutos', desafia
Parece mentira. Mas não é. Aos 79 anos, Milton Martins Kuelle praticamente não mudou. Adicione rugas e alguns cabelos brancos. E só. De resto, conserva a mente fresca e o corpo são, como se estivesse sempre com 20 e tantos anos, pronto a voltar a jogar pelo Grêmio. O único clube de um homem de dois estádios. Ou melhor, três, já que será convidado a entrar em campo em 8 de dezembro, na inauguração da Arena, nova casa tricolor a partir de 2013.Falta o empurrão oficial. As conversas com o presidente Paulo Odone já começaram para que Milton Kuelle se torne o único homem a atuar nos três estádios do Grêmio. Orgulhoso, se coloca à disposição, mas faz uma ressalva, prova cabal de que Milton Kuelle não mudara mesmo - por dentro e por fora. Seu senso de equipe continua intacto.
- Não sinto tanta alegria em ser o único a jogar nas três casas. Porque é uma alegria solitária. Eu gostaria de compartilhar com outros colegas que jogaram tanto na Baixada quanto no Olímpico, mas que não estão mais entre nós- revela, em entrevista ao GLOBOESPORTE.COM.
Milton Kuelle posa com retrato em que comemorava gol tricolor (Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)
A bola ainda acompanha Milton. Toda a quarta-feira à noite. Joga em
Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, por pelo menos 40
minutos num campo de futebol sete. Quem o viu jogar, ontem e hoje,
garante: nada mudou. Muito por isso, arriscou até sugestão para Odone.- Quem sabe dar o pontapé inicial? - indagou o dirigente.
- Presidente, me dá uns 20 minutos. Por cinco, eu não me fardo - completou, brincando. - Tem uns coroas já no time do Luxemburgo!
Brincadeiras à parte, Milton volta a ser Milton, baixa o tom de voz e, sereno, afirma que participará das cerimônias conforme as exigências da direção.
Esse mesmo espírito voluntarioso também se viu no campo, de 1954 a 1965, seu período de profissional do Grêmio. Compôs consistente dupla de meio-campo com o "alemão" Elton. O próprio Milton se denomina "burro de carga" de uma equipe pentacampeã gaúcha. Afirma que segurava as pontas no meio-campo para que o infernal Gessy e o "Tanque" Juarez brilhassem no ataque.
O apelido de Formiguinha, obra do jornalista Mendes Ribeiro, colou como praga. Ficou até hoje. Poderia ser, sim, por sua preocupação com o coletivo e consciência de seu papel em campo. Mas a ideia era dimensionar o quanto corria nos jogos. Milton Kuelle não parava.
- Corria que nem um cavalo, marcava todo mundo - confirma. - Tecnicamente, meu nivel era médio. Mas, no fôlego, ninguém me ganhava.
Ao subir do time de aspirantes, virou titular com o técnico húngaro László Székely e participou da inauguração do Olímpico, em 1954. Era meia-atacante. Mas deixou de ser em 1955, com a chegada de Osvaldo Rolla, ex-jogador histórico do clube e que iria marcar época também como treinador. Voltou ao Grêmio para aplicar o estilo de futebol-força que testemunhara nos gramados europes em excursão pelo Cruzeiro, de Porto Alegre. E viu no Formiguinha um exemplar perfeito para tal.
Milton chegou a ter sua dispensa do Grêmio publicada no jornal Última Hora. Com o sotaque carregado, de "r" arrastado, Foguinho lhe deu a chance de que precisava:
- Eu tenho outra posição para o senhor. Meia esquerda.
- Mas eu sou destro - retrucou um confuso Milton. - E fiz um monte de gols no juvenil.
- O senhor vai correr o campo todo. Para mim, apenas ser bom jogador não serve.
Milton Kuelle foi penta do Gauchão e, depois, tri (Foto: Divulgação/Memorial Herminio Bittencourt)
Tempos duros de Baixada: até macumba contra secaE assim Milton Kuelle se destacou. Virou Formiguinha, campeão, pentacampeão, lenda. Quem diria. Um garoto que comprou a vida de jogador apenas para pagar a faculdade de odontologia, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
- O futebol, para mim, sempre foi o meio. Não o fim - define. - Joguei para me formar. Não foi um tempo auspicioso, como é para o jogador de hoje.
Tanto que recusou proposta do grego Panathinaikos, quando o Grêmio viajou pela Europa, e também passou adiante oferta para rumar ao Vasco. O que não o deixou alijado de construir boas passagens pela Seleção. Disputou dois Pan-Americanos. No de 1960, na Costa Rica, marcou o gol da vitória sobre a Argentina.
Realista, sem deslumbros, assim foi a sua despedida dos gramados. Ou melhor, ela não houve. Apenas achou que, aos 29 anos, era o momento de parar. Pegou os seus pertences no vestiário, despediu-se e foi-se. Não mais apareceu. Pelo menos como jogador. Em 2008, voltou à cena como assessor de futebol.
A vida de dentista, no entanto, segue a pleno até hoje. De segunda a sexta-feira, trabalha das 8h às 12h na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo, a Fase, na Avenida Padre Cacique, em frente ao Beira-Rio. Lá, cuida da saúde de menores infratores apreendidos. E tem o respeito da meninada, garante.
Milton também sabe fazer reverência. Ao Olímpico, palco de sua vida, oferece as palavras mais elogiosas. Considera a transição atual, para a Arena, bem distinta em relação à mudança da Baixada, na década de 1950, para o estádio do bairro Azenha.
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- A verdade é que, na Baixada, o Grêmio não ganhava de ninguém. O Inter
era um time muito superior. Uma vez, como aspirante, vi uma espécie de
ritual, algum trabalho ou despacho feito no campo, para tentar trazer as
vitórias - recorda, sorriso largo. - O Olímpico, não. O Olímpico é um
santuário, de títulos, de vitórias. A mudança, desta vez, tem outro
contexto. De qualquer forma, é para melhor. De roupa nova, você é mais
notado. Vai acontecer isso com o Grêmio agora.O momento de máximo reconhecimento para Milton Kuelle já aconteceu. Em 1999, fincou pé na Calçada da Fama do clube, restaurada recentemente para ser transportada até a Arena. O mesmo caminho que Milton, em carne, osso e (muito) pulmão, vai percorrer em 8 de dezembro para dar o pontapé inicial, jogar 20 minutos ou o que "o Grêmio mandar".
Na verdade, mais do que um servo, Milton Kuelle será um dos donos da festa. Os demais é que vão virar formiguinhas perto do gigantismo do homem de três estádios.
Reconhecimento: Kuelle mostra taça por comportamento exemplar (Foto: Lucas Rizzatti/Globoesporte.com)