Nas últimas semanas, uma discussão sobre o cultivo de alimentos de maneira orgânica e da forma tradicional – com uso de agrotóxicos – tem promovido grande polêmica entre os especialistas do tema. Um recente estudo da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, comparou o valor nutricional dos alimentos orgânicos aos cultivados pela agricultura convencional. A tão polêmica pesquisa afirma que os alimentos orgânicos não são mais nutritivos e nem ao menos mais saudáveis que os convencionais. As afirmações, porém, têm gerado inúmeras críticas por parte de pesquisadores brasileiros, que asseguram que os orgânicos são a melhor opção.
De acordo com o estudo, baseado em uma revisão de resultados de 237 pesquisas, realizadas desde 1960, sobre o valor nutricional e os riscos que causam à saúde, em termos nutricionais, ambos os cultivos de alimentos orgânicos e convencionais (cultivados com uso de agrotóxicos e pesticidas) são iguais, pois as características nutritivas não têm a ver com o tipo de manejo, e sim com características do solo. O estudo aponta ainda que o diferencial do alimento cultivado de maneira orgânica é, em teoria, não ser contaminado com agrotóxicos. A revisão que baseou o estudo não deixou de lado os riscos que a ingestão de alimentos cultivados com base na agricultura convencional pode trazer à saúde humana. Ele aponta que os orgânicos oferecem 30% menos riscos de intoxicação por agrotóxicos que os alimentos da agricultura tradicional.
Na área da saúde pública, as afirmações do estudo têm causado polêmica. Pesquisadores de diversas instituições discordam das afirmações citadas pela pesquisa e ressaltam que, principalmente em níveis nutricionais, os dois tipos de produção de alimentos podem até não possuir tamanha diferença. Entretanto, em relação à produção e ingestão dos agrotóxicos, eles são categóricos quando afirmam os malefícios trazidos à saúde humana a ao meio ambiente, além do modelo de agronegócio. O pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) Marcelo Firpo, em entrevista ao Canal Ibase, disse que a abordagem que a mídia deu sobre o estudo não destacou os benefícios dos orgânicos.
“Até os responsáveis pela pesquisa ressaltaram que os orgânicos são vantajosos por conterem menos resíduos químicos (quase cinco vezes menos) e estarem até 33% menos expostos a bactérias resistentes a antibióticos”. Marcelo Firpo lembrou também que o Sistema de Agricultura Orgânica leva em conta o respeito à natureza e as questões sociais em sua cadeia produtiva. “É importante associar os agrotóxicos ao modelo ambientalmente insustentável e socialmente injusto dos monocultivos dependentes químicos, que caracterizam o modelo do agronegócio brasileiro”, defendeu ele.
Entrando no âmbito do modelo do agronegócio, a Ensp promoveu um grande debate na abertura do ano letivo da Escola de 2012. O coordenador do Movimento dos Sem Terra, João Pedro Stédile, que esteve na Ensp também para divulgar a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida afirmou em sua palestra que a difusão do uso de agrotóxicos no Brasil não tem a ver com a necessidade agronômica. Está totalmente relacionada à etapa atual do capitalismo, à qual nossa sociedade está subordinada. Stédile citou que, nos últimos dez anos, o uso de venenos no Brasil cresceu muito e, há três anos, ficou ainda pior. Atualmente, o país é apontado como o maior consumidor de agrotóxicos do mundo.
O coordenador destacou que o modelo agrícola baseado no uso de agrotóxicos produz um PIB anual de R$ 140 bilhões. Segundo dados da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), anualmente são usados no mundo cerca de 2,5 milhões de toneladas de agrotóxicos. O consumo anual de agrotóxicos no Brasil tem sido superior a 300 mil toneladas. Este consumo se difere nas várias regiões do país, nas quais se misturam atividades agrícolas intensivas e tradicionais. Pesquisas realizadas pela instituição apontaram que os agrotóxicos têm sido mais usados nas Regiões Sudeste (cerca de 38%), Sul (31%) e Centro-Oeste (23%). Na Região Norte, o consumo de agrotóxicos é comparativamente muito pequeno (pouco mais de 1%), enquanto na Região Nordeste (em torno de 6%), uma grande quantidade concentra-se principalmente nas áreas de agricultura irrigada.
O coordenador do Laboratório de Ecotoxicologia do Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Ensp, Josino Costa Moreira, foi entrevistado para falar sobre as polêmicas afirmações da pesquisa americana, sobre o uso dos agrotóxicos e suas relações prejudiciais à saúde humana e ao meio ambiente, além de apontar os modelos econômicos de agricultura. A seguir, a entrevista.
Um polêmico estudo afirma que os alimentos orgânicos não são mais nutritivos e nem mesmo mais saudáveis que os convencionais. Segundo a pesquisa, existe pouca diferença em relação aos benefícios à saúde entre orgânicos e alimentos convencionais. Uma crítica, de pesquisadores brasileiros, é que o estudo não teria considerado os efeitos da exposição prolongada a pesticidas e agrotóxicos na saúde. Que tipos de danos podem ser relacionados a esse consumo prolongado de alimentos contaminados?
Moreira:Penso que, neste comentário, estão incluídos conceitos bem distintos: um relativo à capacidade nutricional e outro à segurança dos alimentos. Quanto à capacidade nutricional, eu, embora não seja especialista no assunto, acredito que a afirmação esteja correta. Ou seja, não devem existir diferenças significativas entre produtos cultivados de maneira orgânica ou não. Quanto à segurança de fato, a existência de resíduos de substâncias não naturais (particularmente aquelas que têm propriedades biocidas) em qualquer alimento não é desejável.
Entretanto, a utilização do termo agrotóxicos – que representa uma família de mais de uma centena de substâncias diferentes, que possuem atividade biológica, mecanismo de ação e propriedades completamente diferenciadas –, generaliza muito o comentário e o enfraquece. Isso porque, em numerosos casos, inexiste comprovação válida em termos científicos, ou ainda essa comprovação é extremamente débil sobre os riscos que algumas dessas substâncias, mesmo em casos de exposição prolongada a seus resíduos, trazem à saúde. Discussões genéricas trazem o risco de nos envolvermos em discursos inflamados, mas sem qualquer base científica sólida.
Outro dado destacado na pesquisa é sobre o modo de produção de alimentos, tendo em vista que, em uma agricultura orgânica, se deve levar em conta o respeito à natureza e as questões sociais em sua cadeia produtiva. O que o senhor aponta como a principal diferença entre esses dois modelos: o modelo ambientalmente sustentável e o de monocultivos?
Moreira:A diferença fundamental perpassa muito mais os aspectos econômicos que aqueles relacionados à saúde ambiental. Sob este ponto de vista, interessa a produtividade e o menor custo de produção; quanto maior a produtividade e menor o custo, melhor. Políticas de aumento de produtividade agrícola, em geral, trazem em seu âmago o incentivo à monocultura e ao uso de agrotóxicos e fertilizantes.
Atualmente, muito se fala sobre a agricultura orgânica. Esse modo de produção é economicamente viável, de maneira que, em um determinado espaço de tempo, apenas se cultive alimentos orgânicos?
Moreira:A agricultura orgânica tem se mostrado economicamente viável, e essa viabilidade conta com um fator importante que é o preço dos alimentos produzidos por essa via, bem mais elevado que os demais, o que tem privilegiado as classes de maior poder de compra em detrimento das outras. Sobre a produção exclusivamente orgânica, eu creio que podemos caminhar para isso, mas ainda há um longo caminho a percorrer, envolvendo inclusive uma grande mudança de mentalidade.
A questão do uso dos agrotóxicos hoje é debatida tanto no meio acadêmico, por meio de pesquisas científicas, quanto nos movimentos sociais, como, por exemplo, na campanha Contra os agrotóxicos e pela vida, liderada pelo Movimento dos Sem Terra. Isso significa que a questão passou a ser uma discussão integrada na sociedade. O senhor acha que, atualmente, podemos começar a discutir de fato um modelo de desenvolvimento sustentável, que considere essa integração entre a saúde e o ambiente?
Moreira:O próprio conceito de saúde inclui, há muito tempo, o ambiente, o que mostra que a relação saúde-ambiente é indissociável. Não se pode falar de saúde sem considerar o ambiente. É óbvio que uma discussão do modelo de desenvolvimento e, principalmente, de sustentabilidade deve ter a participação de todas as camadas populares e requer a conscientização por parte delas, baseada em critérios válidos em termos científicos. A sustentabilidade jamais será obtida sem a participação de todos.
Reportagem de Tatiane Vargas, da Agência Fiocruz de Notícias, publicada pelo EcoDebate, 08/10/2012