quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Meninas se mudam para estudar em Belém e trabalham como empregadas domésticas


Ana Aranha – Agência Pública
Cenira começou a trabalhar como doméstica aos 10 anos (Foto: Ana Aranha/Agência Pública)
Iara*, 18 anos, e Cenira Sarmento, 66, viveram experiências parecidas quando adolescentes. Elas não tiveram o luxo de levar bronca dos pais pela bagunça do quarto, como acontece com as meninas dessa idade. Aos 14 anos, eram elas que arrumavam a bagunça dos outros. Apesar da diferença de gerações, as duas tiveram a mesma sina: foram enviadas por seus pais para trabalhar como empregadas domésticas em Belém como continua a acontecer com muitas meninas do interior do Pará.
Iara tinha 14 anos quando deixou a casa da família em Viseu (305 quilômetros da capital). Cenira tinha 10 quando saiu de São Caetano de Odivelas (110 quilômetros de Belém). Embaladas pela expectativa de um futuro melhor graças aos estudos na capital, desembarcaram assustadas na cidade onde não conheciam ninguém. Foram direto para a casa onde trabalhariam, morariam e aprenderiam lições mais duras do que a rotina diária de limpar a casa, lavar a roupa, fazer o almoço, lustrar a prata.
O  primeiro ensinamento foi sobre disciplina rígida. Iara não gosta de lembrar dos gritos que a humilhavam quando esquecia de limpar um canto da casa. Cenira levava cascudos, quando errava o lugar da louça.
Nas tardes em que Iara insistia em ir à escola, a patroa ralhava e cinicamente ameaçava chamar o conselho tutelar. “Trabalho infantil é crime, tu quer prejudicar seus pais?”. A menina se calava. Como ela, que não tinha nem documento de identidade, poderia argumentar sobre a interpretação das leis? E assim recebia o segundo ensinamento: a submissão.
Lição que era reforçada no cotidiano, até nos “conselhos” que recebia dos patrões. Iara ganhava 100 reais mensais para trabalhar das 6 horas da manhã até a meia noite, de segunda a domingo. Quando falava sobre o desejo de cursar uma faculdade, ouvia da patroa: “Para com isso, menina, pobre tem que se conformar com o seu lugar”.
Cenira, que cresceu em um tempo ainda mais duro com as trabalhadoras domésticas, também recebia aulas diárias sobre o “seu lugar”. Dos 10 aos 15 anos, comia os restos da comida da família, vestia-se com as roupas usadas pelas crianças de quem cuidava e dormia em um quartinho no fundo do quintal. Esse era o seu pagamento pelo trabalho diário.
Mas ela não reclama da sorte: “Sei que fui lambaia [escrava], eu tirava sangue pra fazer tudo naquela casa, cansei de lavar vaso sanitário com as mãos. Mas aprendi o serviço, depois tive orgulho de virar arrimo da minha família”. E conclui com a voz firme da convicção: “Eu acho um absurdo essa lei que criança não pode trabalhar. Trabalhar é bom, não mata ninguém”.
Seu jeito de pensar reflete a opinião de grande parte da população paraense, para quem trabalhar cedo pode ser uma parte importante da formação. E ajuda a explicar porque Iara e Cenira, que nasceram com quase 40 anos de distância, viveram experiências ainda bastante parecidas.
Mas há ao menos uma diferença fundamental entre as duas trajetórias, que pode determinar destinos distintos para as duas.
Cenira só começou a estudar aos 38 anos, quando sua filha também já trabalhava como doméstica. Já Iara, apesar das proibições da patroa, sempre esteve matriculada na escola. Mesmo com mais faltas do que presenças, no contato com colegas e professores ela descobriu que poderia escolher uma profissão diferente daquela que a aprisionava.
Por isso tem planos para o futuro, por enquanto sonhos, que revelam como conseguiu subverter as lições da patroa: “Vou cursar faculdade de direito. Quero ser advogada para dar conforto aos meus pais, pagar a faculdade dos meus irmãos e defender as crianças que são exploradas por adultos, como eu fui”, diz.
Grades invisíveis
A escola é um dos poucos espaços onde as meninas que trabalham como empregadas domésticas se relacionam com pessoas fora do círculo dos empregadores. Mas, mesmo lá, há barreiras que as isolam do convívio social. Com receio do preconceito que ronda a profissão, além do estigma de ser do interior, muitas evitam contato com os colegas.
Nos primeiros anos em Belém, Iara ficava na sala durante o recreio. Não “dava confiança” a ninguém. Hoje, quatro anos depois, ela só se abre com as colegas que vivem ou já viveram a mesma situação. “Eu não falo porque as pessoas não vão dar jeito nos meus problemas”, diz.
A invisibilidade foi o maior entrave encontrado por Maria Luiza Nobre Lamarão, professora e pesquisadora de ciências sociais na Universidade Federal do Pará e uma das maiores especialistas em trabalho infantil doméstico no país, quando começou a pesquisar o tema. As meninas com esse perfil negavam sua condição. “Diziam que não tinham patroa, que moravam na casa da tia e ajudavam com as crianças”, conta Maria Luiza.
Depois de muitas entrevistas, ela conseguiu levantar um detalhado perfil de 16 meninas na mesma condição que Iara. A maior parte delas era do interior e foi para Belém entre 10 e 14 anos. Sem contato com a família ou amigos, criaram laços confusos com os patrões, que misturavam o papel de chefe com o de pai e mãe – com quem quase não têm contato.
Em busca de estudos, Iara deixou a casa dos pais aos 14 anos e se tornou empregada doméstica (Foto: Ana Aranha/Agência Pública)
Iara só fala com sua família uma vez por ano, quando os visita. Ou muito raramente, quando a mãe viaja à cidade mais próxima do lugar onde vivem. Por isso mesmo depois de ouvir a patroa desdenhar de seus sonhos, era a ela que recorria quando precisava de conselhos. “Ela (a patroa) dizia que queria me ajudar, que falava aquilo porque gostava de mim. Eu acreditava”, lembra.
Para Maria Luiza, os empregadores buscam se beneficiar dessa mistura de papéis quando escolhem meninas nessa faixa etária. “Eles pegam a menina para criar”, afirma. “Não pode ser muito pequenininha, que aí não dá conta do trabalho; mas raramente elas são maiores, quando a socialização já está sedimentada”.
Essa “formação” prejudica o desenvolvimento da autoestima dessas meninas, que só recebem incentivos para cumprir tarefas domésticas, além dos abusos a que estão sujeitas. Como aconteceu com Iara, muitas são humilhadas, privadas de frequentar a escola regularmente e desestimuladas a desenvolver outras habilidades.
Hoje, trabalhando em outra casa, Iara tem condições de compreender melhor o que passou. “Ela (a patroa) não queria que eu saísse dali. Eu me sentia sufocada, presa, não podia conversar com ninguém. Era só trabalho, muito trabalho. Mas eu achava que ia mudar”. Além de cuidar da casa, a menina tinha que limpar a loja de roupas da família e, no fim do dia, dobrar e guardar as peças reviradas pelas clientes.
Iara diz que na nova casa o serviço diminuiu e que ela é estimulada a frequentar a escola. Mesmo assim, há noites em que chega na aula exausta. Uma de suas colegas, que também trabalhou como doméstica e hoje está no caixa de uma papelaria, percebe as olheiras da amiga e lhe dá conselhos para buscar outro emprego. Mas Iara não se sente confiante. “Primeiro tenho que terminar a escola, fazer cursos, quem vai querer me contratar assim?”.
Matéria da Agência Pública, publicada pela EBC e pelo EcoDebate, 03/10/2012

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