[Correio Braziliense] É preciso refletir um tanto sobre as exacerbadas reações de leitores do Correio Braziliense a duas notícias da última semana. As matérias jamais poderiam ser omitidas, pelo bem do papel social da imprensa e pela liberdade de expressão.
Uma matéria divulgou casos de homofobia (ódio ou horror aos homossexuais — LGBTT) ocorridos neste início de 2013 na Universidade de Brasília (UnB). Aliás, algo que já é uma realidade para a juventude brasileira do século 21! A outra notícia é sobre heróis/heroínas de histórias em quadrinhos e animações, como os da Marvel, que “saem do armário” em nível mundial.
Foram muitas críticas destrutivas, de linguagem agressiva, postadas no Correioweb e no Blog da Igualdade, que edito no site do CB. Comentários que nos remetem a veementes e apaixonados discursos, ou pregações, de intolerantes. Sejam políticos, religiosos e/ou apresentadores de programas de televisão. Enfim, quem quer que tenha a atenção de públicos ávidos por lideranças, por ideologias ou um sentido em suas vidas.
As “massas” terminam por seguir líderes tão ou mais ignorantes que elas próprias, mas que têm carisma e/ou “poder”. Foi o caso do surgimento do nazismo hitlerista em uma Alemanha arrasada, com o orgulho ferido e sedenta por vingança, depois da Primeira Guerra Mundial. O fanatismo nazista detonou a Segunda Grande Guerra e a subsequente destruição de grande parte da Europa, com milhões de mortos e feridos.
Em 1994, o padre católico Daniel A. Helminiak publicou, nos Estados Unidos, o livro What the Bible Really Says about Homosexuality (O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade). O sacerdote Helminiak é um respeitado doutor (PhD) em teologia pelo Boston College. O livro é baseado em suas pesquisas sobre a sexualidade, a psicologia, a espiritualidade e os estudos da Bíblia e Deus (teologia). É sucesso editorial em diversos países.
Em resumo, Helminiak afirma que aqueles que percebem as passagens da Bíblia como condenações à homossexualidade estão sendo mal orientados por traduções faltosas e pobres interpretações das Sagradas Escrituras. Ele explica, de forma bem clara, que lamentavelmente a Bíblia vem sendo usada para justificar formas de dominação de uns sobre outros seres humanos. São os casos conhecidos, ao longo da história das civilizações, de escravidão, de Apartheid, de inquisições, de subjugação das mulheres e de discriminação contra homossexuais.
“O verdadeiro pecado de Sodoma, mencionado por Jesus Cristo no Evangelho de São Mateus, é o pecado da falta de hospitalidade, o pecado da falta de respeito para com os outros, que nos visitam, que se encontram nos cruzamentos de nossas vidas e que merecem toda a nossa gentileza como a que se deve às ‘imagens de Deus’”, exalta Mariano Bacellar Netto, das Equipes de Nossa Senhora, na contracapa do livro.
Em sentidos de história, de memórias e de construtos pessoais e sociais, as palavras de teólogos como Helminiak remetem ao mundo grego clássico, que foi tão bem (re)pensado pelo filósofo-historiador francês Michel Foucault. Em textos excepcionais como Escrita de si ou Vigiar e punir, ele lembra que o conceito ocidental de homossexualismo surgiu apenas na modernidade.
Portanto, o contemporâneo preconceito das sociedades eurocêntricas contra os LGBTT não poderia recobrir práticas sexuais entre homens (ou entre mulheres) na Grécia Antiga, no Império Romano, ou até mesmo durante a Idade Média (das trevas). É preciso, antes de tudo, conhecer e saber que a história — de tantas civilizações/sociedades — não é algo linear, que ocorre inexorável e uniformemente, no mundo.
Cada sociedade, em seus saberes e fazeres, tem estágios de avanços e retrocessos. Tradições e costumes que se transformam ou se perenizam, no tempo e em espaços que também podem ser mutáveis. Ora, até mesmo os proeminentes membros do conservador Partido Republicano norte-americano acabam de assinar um sumário em suporte ao casamento de pessoas do mesmo sexo. Deu no New York Times! E o jornal Washington Post, quem diria, foi acusado por seus leitores de ser pró-gays!
Pensemos em quantas crenças e dogmas da fé cristã mudaram ao longo dos séculos. Grandes conceitos ou dogmas da Igreja Católica Romana são criados ou transformados a partir do Primeiro Concílio de Constantinopla, em 381 d.C., ao longo do século 5, durante a Idade Média e até hoje. O mito de que Maria Madalena foi uma prostituta é um exemplo. Estudiosos já teriam comprovado que, ao contrário, ela pertenceu a uma das famílias descendentes de Davi, sendo, portanto, da linhagem real judaica.
As referências anacrônicas preconcebidas são, sempre, um problema. Assim como é a tendência de construirmos uma “essência natural”. Uma necessidade obtusa de ir buscar na história como é que uma tradição ou um objeto se transformou, ao contrário de percebermos que o objeto é apenas recorte de um lugar e/ou tempo.
Há que se buscar construtos próprios. Como vêm fazendo as mulheres, ao investirem em suas histórias e (re)escrevê-las, desfazendo-se de um destino naturalizado ou preconcebido, assujeitadas pelo determinismo patriarcal de certas sociedades. Assim também ocorre com os LGBTT, os negros, os indígenas e tantos outros. Devemos ser isentos/as de relações de medo e de sujeição. Sem o rótulo de “natureza humana”. O que vem a ser isso?
Sandra Machado é Doutora em história e jornalista
Artigo originalmente publicado no Correio Braziliense e socializado pelo ClippingMP.
EcoDebate, 12/03/2013