[EcoDebate] 351 detentos receberão atendimento adequado à dependência química na prisão, cumprindo a finalidade legal de reabilitação dos apenados. Esse é o mote do Centro de Referência para Privados de Liberdade Usuários de Álcool e Outras Drogas a ser criado no RS, num projeto pioneiro no país, a de um presídio com essa especificidade, com 351 vagas. Uma manifestação veiculada no rádio já levantou um questionamento, dizendo que só depois de presos os dependentes terão acesso ao atendimento à saúde. Mas essa iniciativa, na área da Segurança Pública, não impede que a Secretaria da Saúde desenvolva melhores programas de tratamento e prevenção à dependência química, pelo contrário, pode e deve servir como estímulo para que esse problema seja melhor enfrentado em todas esferas públicas.
Não se esperem consensos em matéria de políticas públicas, mas os profissionais que atendem nessa área e os próprios pacientes serão os primeiros a reconhecer a importância dessa medida tão necessária e corajosa, por parte do governo. É o enfrentamento, mesmo que tardio, de um dos principais problemas que afetam a saúde e também a segurança públicas. Cerca de metade dos acidentes de trânsito, assim como dos acidentes de trabalho e dos episódios de violência, tem relação com o uso de substâncias. Isso afeta a todos porque, além dos serviços demandados em saúde e segurança, o Estado também arca com os ônus não só do atendimento quanto da previdência social, em relação às vítimas de todas essas ocorrências.
O que nem todos sabem é que existem abordagens que podem ser promissoras, como se constata hoje no mundo todo em grupos de entre-ajuda tais como Alcoólicos Anônimos (A.A.) e Narcóticos Anônimos (N.A.), além dos grupos análogos frequentados pelos familiares destes. Os melhores serviços de saúde incluem, entre os profissionais, também a figura do consultor que é um membro dos próprios grupos de entre-ajuda e contribui muito – com sua experiência vivencial – na abordagem com os pacientes, principalmente no momento inicial que é o da negação do problema.
Ao longo do século XX, com o desenvolvimento de várias correntes de pensamento científicas, as mais diversas estratégias médicas, psicológicas e sociais foram criadas e testadas para atendimento nessa área. Muitas são válidas e úteis, mas nenhuma representa alguma forma de “cura” absoluta ou definitiva, sendo que na média os índices de “recuperação” – ou melhor, dos pacientes que seguem em abstinência – após 5 anos, giram em torno de 20% das pessoas atendidas. Pois os resultados dos grupos de entre-ajuda (que além de tudo são absolutamente gratuitos e independentes dos governos) estão sempre entre os melhores, em qualquer parte do mundo, seja em Cuba ou na Inglaterra.
A compreensão de que estas pessoas requerem uma abordagem própria, que inclui os companheiros de vivência no seu atendimento, começou há mais de cinquenta anos, na metade do século XX, quando dois alcoolistas se reuniram e começaram a criar os A.A. como um modo de enfrentarem a própria dependência. O reconhecimento da importância dessa abordagem, pelo Estado, está chegando agora em nossa sociedade, portanto, meio século depois. Mas, como no lema que precedeu à Independência, “libertas quae sera tamen” (e assim como no caso da volta do interesse do país pelas ferrovias), saudemos as boas iniciativas, ainda que tardias.
Montserrat Martins, Colunista do Portal EcoDebate, é Psiquiatra.
EcoDebate, 27/08/2012