Na tarde do dia 19 de junho, uma sexta-feira, dois homens pegaram um barco e saíram da praia de Mauá para as águas da Baía de Guanabara. Faziam o que tinham aprendido com seus pais que, por sua vez, apreenderam o ofício da pesca com seus avós. Diferente de tantas pescarias praticadas por seguidas gerações, aquela foi diferente: Almir Nogueira de Amorim, 40 anos, e João Luiz Telles Penetra conhecido como Pituca, 45, foram assassinados. O corpo de Almir foi encontrado próximo ao município de Magé no domingo: amarrado ao barco submerso próximo à praia de São Lourenço. Na segunda-feira, encontraram Pituca: mãos e pés amarrados, próximo à praia do Gradim, em São Gonçalo. Os pescadores faziam parte da Associação de Homens e Mulheres do Mar (Ahomar), que desde a fundação, em 2003, já sofreu com o assassinato de outros dois membros e se tornou símbolo da resistência da cultura caiçara em uma região cada vez mais hostil à população e receptiva a megaprojetos poluentes, como o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj) da Petrobrás.
Dar visibilidade internacional às comunidades fluminenses entrincheiradas por grandes empreendimentos foi o objetivo do Toxic Tour, iniciativa que entre os dias 15 e 17 de junho levou ativistas, jornalistas e pesquisadores estrangeiros a três projetos com enormes impactos sociais e ambientais localizados na região metropolitana do Rio de Janeiro. Partindo da sede do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), financiador de grande parte das empresas em operação no país, as visitas tiveram como destino o bairro carioca de Santa Cruz e a comunidade pesqueira da Baía de Sepetiba, afetados pela Thyssen Krupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA), e os municípios de Duque de Caxias e Magé, onde populações inteiras sofrem com a Refinaria de Duque de Caxias (Reduc) e com a construção do Comperj. Em Caxias, os visitantes conheceram ainda o aterro sanitário de Jardim Gramacho, hoje desativado, e o terreno contaminado na área de Cidade dos Meninos.
Magé
Segundo os pescadores, tudo começou em 2000. Naquele ano, 1,3 milhões de litros de petróleo vazaram dos dutos da Petrobrás. A ruptura da válvula que levava o óleo da Reduc a uma refinaria no meio da baía de Guanabara aconteceu à 1h da manhã, mas só foi detectado às 7h por um pescador que avisou a polícia. De acordo com Alexandre Anderson, presidente da Ahomar, foi apurado que a temperatura do óleo no momento do acidente variava entre 80ºC e 90ºC, muito acima da temperatura considerada segura, 60ºC, o que teria causado o rompimento. Desde então, além de lidar com os impactos ambientais, quem vive da pesca na região começou a se defrontar cada vez mais com restrições à navegação trazidas pelas obras do Comperj. “Há 12 anos a Petrobrás prejudica a pesca na baía de Guanabara. O derramamento de óleo destruiu a fauna, a flora e a vida do pescador. Até hoje a Petrobrás não nos ressarciu os prejuízos. Em 2007, quando a pesca começou a voltar ao normal, começaram os projetos”, contou Pelé, membro da associação e pescador há 23 anos, durante o Toxic Tour.
Desde então, a Ahomar começou a incomodar peixes grandes com os muitos protestos contrários às obras do complexo. A principal resistência aconteceu em 2009, quando a associação impediu a instalação dos dutos acampando em cima das estruturas por 38 dias, até que enferrujassem, causando um prejuízo de milhões à Petrobrás. Em maio daquele ano, Paulo Santos Souza, tesoureiro da associação, foi assassinado a tiros dentro de casa, na frente dos dois filhos menores. Em 19 de janeiro de 2010, o pescador Márcio Amaro também foi assassinado em casa, um dia depois de entregar um documento com nomes e fotos de grupos armados que faziam segurança das balsas e dos canteiros de obras da Petrobrás na sede da empresa. Os crimes jamais foram esclarecidos.
Após sofrer vários atentados, Alexandre Anderson tem certeza que as ameaças à sua vida e os assassinatos de Paulo, Márcio, Pituca e Almir não são obra de nenhuma coincidência. Em entrevista por telefone à Poli, ele conta que, ao contrário do que foi divulgado pela Delegacia de Homicídios de Niterói e São Gonçalo, a comunidade de pescadores não acredita que as mortes de Pituca e Almir sejam fruto de uma disputa por territórios de pesca com curralheiros da região. “Entendemos que as circunstâncias dos homicídios não deixam margem a essa versão, inclusive desconhecemos essa disputa. É sabido que há uma resistência dos pescadores quanto à ocupação industrial da Baía de Guanabara. Nossa defesa do meio ambiente e da pesca artesanal atrasa muito os empreendimentos, não só da Petrobrás, como de outras empresas químicas que chegam atraídas pelo Comperj. Estamos com medo e quem ganha com isso são as empresas”, avalia.
Após sofrer vários atentados, Alexandre Anderson tem certeza que as ameaças à sua vida e os assassinatos de Paulo, Márcio, Pituca e Almir não são obra de nenhuma coincidência. Em entrevista por telefone à Poli, ele conta que, ao contrário do que foi divulgado pela Delegacia de Homicídios de Niterói e São Gonçalo, a comunidade de pescadores não acredita que as mortes de Pituca e Almir sejam fruto de uma disputa por territórios de pesca com curralheiros da região. “Entendemos que as circunstâncias dos homicídios não deixam margem a essa versão, inclusive desconhecemos essa disputa. É sabido que há uma resistência dos pescadores quanto à ocupação industrial da Baía de Guanabara. Nossa defesa do meio ambiente e da pesca artesanal atrasa muito os empreendimentos, não só da Petrobrás, como de outras empresas químicas que chegam atraídas pelo Comperj. Estamos com medo e quem ganha com isso são as empresas”, avalia.
Alexandre, que anda com escolta policial fornecida pelo Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos da Presidência da República, reivindica que mais membros da Ahomar sejam protegidos. De acordo com ele, os homicídios, que aconteceram apenas um dia após o término da Cúpula dos Povos, ocorrem em um momento em que todas as energias da associação estão concentradas na campanha contra o uso industrial do rio Guaxindiba, localizado dentro da Área de Proteção Ambiental de Guapimirim. “Eles foram mortos próximos ao Guaxindiba, achamos que pode ser um recado”.
A inviolabilidade dos rios da APA Guapimirim e da Estação Ecológica Guanabara, duas unidades de conservação federais, foi uma das condicionantes prévias para a Petrobrás conseguir a licença do Comperj. A empresa enfrenta problemas para transportar equipamentos pesados do porto do Rio de Janeiro para o complexo. Em 2008, algumas alternativas foram apresentadas pela Petrobrás ao Instituto Estadual do Ambiente (Inea) e de acordo com a própria empresa, a mais impactante seria a dragagem do Guaxindiba. “Ano passado a alternativa do Guaxindiba foi surpreendentemente reapresentada pela empresa, que alegou que a construção do porto em São Gonçalo seria muito mais caro do que a hidrovia, um argumento exclusivamente financeiro. Daí a ênfase da equipe técnica da APA, acompanhada pelo seu conselho, em manter um posicionamento firme contra a hidrovia”, explica Breno Herrera, chefe da APA Guapimirim. Desde então, o conselho da sociedade civil que faz parte da gestão da unidade, do qual a Ahomar faz parte, denuncia os possíveis impactos: “A draga levantaria sedimentos do fundo do rio, gerando a suspensão de metais pesados que estão inertes porque o leito do Guaxindiba é um ambiente sem muito oxigênio. Em atividade, os metais contaminariam o pescado”, explica Herrera.
Santa Cruz
Seu Francisco saiu de casa para olhar o movimento. Ficou curioso com tanta gente que desceu de um ônibus, quase todos com câmeras na mão e alguns falando outros idiomas. Perguntou o que estava acontecendo e explicaram a ele que os “turistas” eram pessoas de diversos países e do Brasil que estavam no Rio de Janeiro por ocasião da Rio+20 e foram conhecer de perto os impactos da TKCSA. “É um perigo isso aqui”, comentou ele.
Seu Francisco, que mora no bairro há 60 anos, viu o local mudar muito com a chegada da empresa. Assim como ele, milhares de pessoas – estima-se que 20 mil – sintam os impactos da poluição gerada pelo empreendimento na vida cotidiana, especialmente nos últimos dois anos, quando começaram as atividades da siderúrgica e uma “chuva de prata” começou a cair em cima das roupas no varal, das plantas e passou a fazer parte do ar respirado pelas pessoas. A siderúrgica entrou em operação em junho de 2010, mas acumula denúncias e processos desde o início do projeto de instalação, em 2005. Os moradores do local também resistem desde então e já realizaram diversas ações, inclusive fora do país, com o apoio de entidades socioambientais. A empresa chegou a ser multada pelos órgãos de fiscalização estaduais mais de uma vez.
A viagem até Santa Cruz demorou cerca de uma hora. A fumaça dos alto-fornos da siderúrgica já pôde ser vista assim que o ônibus chegou ao bairro. A comitiva avançou o mais próximo possível da TKCSA, um dos portões de entrada da empresa, onde um carro da segurança particular estava estacionado. Os visitantes fotografaram e filmaram a siderúrgica e também foram fotografados por um dos seguranças. Em seguida, os moradores organizaram uma recepção em um salão de festas para relatarem os impactos sofridos. Nas paredes, cartazes de protesto contra a presença da TKCSA na região e várias fotos das evidências do impacto – como uma criança com problemas de pele e a concentração do pó prateado nas folhas das plantas.
Jacir do Nascimento, ex- pescador, relatou emocionado o que vem acontecendo desde que a empresa se instalou em Santa Cruz: “Não podemos mais tirar o nosso sustento da Baía de Sepetiba, temos que procurar um outro modo de viver para levar o sustento para dentro de casa. A TKCSA acabou com os peixes. Os nossos governantes aceitaram essa empresa aqui, depois que eles tentaram se instalar em vários outros locais e não conseguiram. Disseram que não havia moradores perto de onde a empresa seria implantada, o que não é verdade”.
Jacir acrescentou que antes da instalação da empresa foi feita uma reunião com os moradores. Na ocasião, eles se posicionaram contra o empreendimento. Entretanto, de acordo com ele, a posição levada para a Alemanha, sede da siderúrgica, foi de que os moradores de Santa Cruz não estavam apresentando resistência à TKCSA. Ainda segundo ele, fotos do bairro foram tiradas de forma a mostrar as partes menos habitadas para tentar referendar o argumento de que não haveria impactos significativos à comunidade. “Isso foi fraude deles. Agora estamos passando esse perrengue aqui, minha vista tem ardência o tempo todo, essa coceira na pele. Eu com um pulmão só, pescador, com 58 anos de idade, não estou aguentando. E as crianças, como ficam? Quem já tem bronquite não aguenta”, protestou.
Moradores de Santa Cruz fundaram recentemente a Articulação da População Atingida pela Companhia Siderúrgica do Atlântico e, com o apoio de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) que estudam os impactos da poluição particulada na saúde – e chegaram a ser processados pela empresa por causa disso – têm feito diversas ações de denúncia. Segundo relatório elaborado pela Fiocruz, no material particulado coletado na casa dos habitantes do entorno da siderúrgica foram encontrados diversos elementos químicos, como ferro, cálcio, manganês, silício, enxofre, alumínio, magnésio, estanho, titânio, zinco e cádmio, contrariando a tese da siderúrgica de que se trata apenas de grafite.
Para Fernando Costa, da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, também presente no Toxic Tour, a instalação da TKCSA em Santa Cruz é um típico caso dos negócios fechados entre as empresas e os governos sem levar em conta os direitos básicos das populações. “Aqui nós vemos um caso exemplar de injustiça ambiental que acontece em vários locais do mundo, uma comunidade que não foi consultada e que está sofrendo os impactos. Eles estão resistindo, mas a empresa tem muito mais força, está junto com o governo. Existe uma captura corporativa, uma relação promíscua das grandes corporações com os governos e é isso que estamos vendo aqui. As opções do governo não são mais para defender o povo, mas entregá-los para essas iniciativas”.
Duque de Caxias
Jardim Primavera, Beco da Alegria, Campos Elíseos… Quem escuta pela primeira vez os nomes de algumas das localidades próximas à Reduc pode até supor que eles oferecem boas condições de vida às populações que moram ali. Uma rápida visita a esses locais, porém, é suficiente para desmentir essa impressão: no entorno da refinaria – que segundo o governo federal rende ao Estado R$ 1,2 bilhão por ano em impostos – milhares de pessoas vivem em condições precárias: habitam casas sem saneamento básico, transitam por ruas sem asfalto e têm pouco acesso a serviços públicos de saúde, educação e transporte. Para piorar, ainda sofrem os impactos diretos das atividades do empreendimento.
“Os poucos dados disponíveis mostram uma grande poluição do ar na região vizinha à refinaria, com vários poluentes com níveis acima do considerado aceitável, como o monóxido de carbono, compostos orgânicos voláteis e ozônio em baixa atmosfera”, enumera Sebastião Raulino, do Fórum dos Afetados pela Indústria do Petróleo e Petroquímica das Cercanias da Baía de Guanabara (FAPP – BG), que atuou como guia durante a visita. Dados levantados pelas estações de monitoramento do ar próximas à refinaria mostram que os índices de ozônio em baixa atmosfera na região chegam a 300 microgramas por metro cúbico, o triplo do aceito pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Segundo a OMS, o ozônio em baixa atmosfera está relacionado a problemas respiratórios e irritação dos olhos e nariz. “Níveis que não deveriam ser ultrapassados mais de uma vez ao ano são ultrapassados mais de cem vezes dependendo do local”, aponta Sebastião, que é professor da rede pública de Duque de Caxias e da UERJ. “Há outros poluentes, mas não sabemos exatamente tudo o que é lançado para a atmosfera e nem os efeitos sinérgicos desses poluentes. Não temos um estudo epidemiológico da região, que seria uma maneira de tentar relacionar as doenças mais incidentes com o tipo de atividade econômica e pensar, daí, políticas de saúde”, critica.
Segundo Raulino, a deposição irregular de resíduos é outro problema comum. “Já tivemos casos de crianças que morreram por causa do contato com produto tóxico lançado em terreno baldio”, revela. Por fim, as populações do entorno da refinaria ainda convivem com o risco cotidiano de acidentes, como a explosão de uma esfera de Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), em 1972, que causou pânico entre moradores da região. E esse não foi o único acidente. “Em 1999, houve um incêndio na Petroflex em que ocorreu a emanação de um pó branco que atingiu bairros de Caxias e de Belford Roxo causando problemas respiratórios”, cita.
A presença da Reduc multiplicou empreendimentos ligados ao setor químico. Hoje, 76% das indústrias de Duque de Caxias são ligadas ao setor e geram, por meio de impostos, boa parte do orçamento do município. Segundo dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Duque de Caxias tem o 15° maior PIB municipal do Brasil, mas essa riqueza não beneficia a população. “Caxias tem todos os problemas comuns à Baixada Fluminense, apesar da riqueza produzida aqui. Os serviços de saúde e as escolas são muito precários”, diz Raulino. Segundo ele, um dado que mostra a dissonância entre a pujança econômica e as condições de vida da população são os altos índices de hanseníase na cidade. “É uma das campeãs em casos de hanseníase por número habitantes no país, o que mostra a precariedade do atendimento à saúde e a falta de saneamento básico na cidade”, aponta.
Gramacho
Além da Reduc, a visita à Duque de Caxias também passou pelo aterro sanitário de Jardim Gramacho, que recebeu durante mais de 30 anos o lixo produzido na região metropolitana do Rio de Janeiro. Apesar de ter sido fechado esse ano, o aterro deixou como legado para a cidade um enorme passivo ambiental que levará décadas até ser equacionado. “Hoje se fala que o problema está resolvido, mas o que ocorreu foi apenas a transferência do problema para Seropédica, para onde o lixo está sendo levado desde o fechamento de Gramacho”, aponta Sebastião Raulino. “Ali já estão sendo constatados problemas como a contaminação por chorume de córregos próximos. Além disso, as famílias do entorno agora sofrem com moscas, que passaram a infestar áreas a até sete quilômetros do aterro”.
Cidade dos Meninos
Duque de Caxias também abriga um dos casos mais antigos de injustiça ambiental em território fluminense: a Cidade dos Meninos, antigo colégio agrícola fundado pela então primeira dama Darcy Vargas, em 1946. Um ano depois, nove pavilhões que não estavam sendo utilizados pelo colégio passaram a abrigar o Instituto Nacional de Malária, que para combater a malária e a doença de Chagas, instalou na área uma fábrica de inseticidas que passou a produzir compostos que hoje são proibidos, como o DDT e o BHC. Em 1960, a fábrica foi desativada. Cidade dos Meninos é hoje uma comunidade onde moram 550 famílias, a maioria descendente de gente que foi para o local trabalhar no colégio e na fábrica de inseticidas. De acordo com Miguel Dupot, morador da comunidade, o passivo ambiental deixado pela indústria de inseticidas ainda prejudica a saúde da população, mas a extensão do problema até hoje é desconhecida devido à omissão do poder público. “A literatura científica diz que o BHC provoca câncer, entre outros males e por isso desde 1991 estamos brigando na justiça pelo cercamento da área da antiga fábrica, segregação do material contaminante e o acompanhamento da saúde da população”, aponta. Segundo ele, em 1995 a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) realizou exames de sangue para detectar a presença de BHC no organismo de moradores. O Ministério da Saúde proibiu a divulgação dos resultados alegando que o estudo adotara uma metodologia incorreta.
Matéria de André Antunes, Maíra Mathias e Raquel Júnia, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), publicada pelo EcoDebate, 06/08/2012