Os adolescentes que compuseram a amostra, do município de Niterói (RJ), são oriundos majoritariamente de um segmento social mais empobrecido, apresentam histórico de evasão escolar, são provenientes de famílias nas quais a mãe é a responsável, já viveram em situação de rua ou em acolhimento institucional ou transitaram pela rede de assistência social
O estudo analisou dados dos prontuários de atendimento de 61 adolescentes, entre 12 e 17 anos, com relato de uso de crack, além de entrevistas com os próprios jovens, seus familiares e profissionais de saúde que integram as equipes de atendimento
Pesquisas apontam a existência de uma estreita relação entre o uso abusivo de crack e as populações mais vulneráveis, em sua maioria, desempregados, pessoas com baixa escolaridade e poder aquisitivo e em situação de rua, entre eles crianças e adolescentes. No intuito de compreender profundamente a realidade de jovens usuários de crack no município de Niterói, a psicóloga Érica Vieira desenvolveu o Estudo compreensivo sobre adolescentes usuários de crack, seus familiares e atuação dos serviços de atenção. A pesquisa revela que as vulnerabilidades presentes na história de vida desses jovens, muitas delas anteriores ao uso do crack, são grandes potencializadoras do consumo abusivo da droga entre o grupo. Desenvolvido na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), o estudo apontou que todos os jovens que compuseram a amostra são oriundos majoritariamente de um segmento social mais empobrecido, apresentam histórico de evasão escolar, são provenientes de famílias nas quais a mãe é a única responsável, possuem histórico de atendimento no Conselho Tutelar, já viveram em situação de rua ou em acolhimento institucional ou transitaram por diferentes serviços da rede de assistência social.
O objetivo da pesquisa, apresentada com vista à obtenção do título de mestrado, foi caracterizar os adolescentes usuários de crack que são acompanhados por uma Equipe de Referência Infanto-Juvenil para Ações de Atenção ao Uso de Álcool e Drogas, no município de Niterói, para mapear a trajetória institucional desses jovens, com o intuito de conhecer e problematizar o atendimento oferecido a eles na região. Para isso, foram analisados dados dos prontuários de atendimento de 61 adolescentes, entre 12 e 17 anos, com relato de uso de crack, além de entrevistas com os próprios jovens, seus familiares e profissionais de saúde que integram as equipes de atendimento. No grupo analisado, identificou-se que muitos jovens já se envolveram com o tráfico de drogas, sofreram ameaças de morte, participaram de roubos ou furtos; no caso das meninas, houve a prática da prostituição. Também se observou grande descompasso entre as expectativas dos familiares e dos adolescentes entrevistados, e as atuais concepções de cuidado em saúde mental voltadas para os usuários de álcool e outras drogas.
Segundo Érica, outro ponto que chamou a atenção nos resultados foi o fato de ser quase igual o percentual de meninas e meninos com participação no tráfico de drogas. “Analisando os dados, verificamos que a maioria dos adolescentes faz uso de, no mínimo, mais uma droga associada ao consumo de crack. Além disso, poucos deles já iniciaram algum tipo de tratamento antes do acompanhamento da Equipe de Referência Infanto-Juvenil para Ações de Atenção ao Uso de Álcool e Drogas”, afirmou.
Consumo da droga, relação familiar e atendimento aos usuários
Do total de adolescentes que compuseram a amostra, 50 eram do sexo masculino e 11 do feminino. Segundo a autora, “o estudo por sexo foi adotado em razão de terem sido observadas diferenças interessantes entre meninos e meninas que utilizam o crack tendo em vista variáveis como envolvimento com o tráfico, prostituição, ameaça de morte e outras”. A maioria do grupo estudado está na faixa etária entre 15 e 17 anos (78,7%), o que representa 86% homens e 45,5% mulheres. Dentre todos, 83,9% encontram-se fora da escola, equivalendo, no grupo masculino, a 86,7% e, no feminino, 72,7%. Quase metade dos adolescentes já viveu em situação de rua ou ainda vive (43,3%), dentre os quais 40,8% meninos e 54,5% meninas.
Foi observado também que o porcentual de envolvimento com o tráfico foi de 66,7%, sendo 69,4% entre os adolescentes do sexo masculino, e 54,5% entre os do sexo feminino. Mais da metade dos prontuários registram passagem dos jovens por alguma instituição de acolhimento (59,6%), dos quais 60,4% entre meninos e 55,6% entre meninas. Ainda de acordo com os resultados, 26,7% dos jovens pesquisados cumpriram medida socioeducativa, (30,6% homens e 9,1% mulheres). Os prontuários registraram ainda 5% de tentativas de suicídio de jovens do sexo masculino (6,1%). “Também foram verificados casos de violência sexual sofrida pelos adolescentes em algum momento da vida (6,7%), sendo 6,1% com garotos e 9,1% com garotas. Em 20,3% dos casos, foi identificada a presença de comorbidades, como relato de doenças, transtornos psiquiátricos ou sintomas físicos, sendo 22, 9% do grupo masculino e 9,1% do grupo feminino”, descreveu Érica.
De acordo com a autora, outro dado importante foi observado quanto à estrutura familiar dos adolescentes usuários de drogas, que apresentou perfil homogêneo entre meninas e meninas. Em 91,5% dos casos, os pais não vivem juntos. No grupo como um todo, 85,5% não moram com o pai, seja porque ele abandonou a família ou é falecido. Encontrou-se a presença mais constante da mãe; em 61,8% dos casos, os adolescente moram com ela, sendo a porcentagem entre os meninos de 59,1% e entre as meninas de 72,7%.
A pesquisa aponta também que as informações obtidas sobre uso abusivo de álcool ou outras drogas entre familiares são muito relevantes. Segundo Érica, 10,5% dos casos apresentaram relato de uso pelo pai, sendo todos os casos registrados entre os adolescentes do sexo masculino (13%). Em relação ao consumo feito pela mãe, o porcentual foi de 19,3%; entre os meninos 15,2%, e entre meninas 36,4 %. “É importante observar que, por estar mais presente, a mãe exerce forte influência no comportamento dos filhos quando são dependentes de álcool e drogas”, alertou.
Para Érica, os resultados apontados pela pesquisa levam ao questionamento se, de fato, o crack é o responsável pelos muitos agravos que a ele são atribuídos, ou se ele tem funcionado como uma espécie de cortina de fumaça que nos impede de avaliar o que se encontra por trás. “É possível pensar que, talvez, o uso de crack na vida desses sujeitos, cujas famílias se encontram inseridas na estrutura social de modo bastante precário, seja apenas mais um elemento a compor o quadro de desamparo e de marginalização social experimentado ao longo de sua trajetória”, avaliou.
Segundo a pesquisadora, os resultados tornam evidente a importância de ampliar as ações no território ocupado pelos adolescentes, em vez de esperar que eles apareçam nos serviços. Neste sentido, deve haver maior investimento na criação e ampliação das equipes de redutores de danos e de consultório na rua, que trabalham diretamente nesses espaços. Também parece relevante potencializar o trabalho que já vem sendo feito pelos Caps AD e Caps I, os quais, muitas vezes, não contam com equipe suficiente para realizar seu trabalho de forma plena. Ao falar sobre a internação, a autora ressalva que este é um instrumento legítimo do campo da saúde mental previsto na Lei 10.216, que deve ser utilizado em casos e momentos específicos, e não como um instrumento de coerção em massa. Por fim, Érica ressaltou que a observação dos resultados levantados nos prontuários e no relato dos entrevistados reafirma a necessidade de fortalecimento das ações de cunho inter-setorial, uma vez que as situações envolvendo o uso abusivo do crack são atravessadas por questões de diferentes ordens, envolvendo o âmbito da saúde, assistência social, trabalho, educação, entre outros.
Matéria de Tatiane Vargas, da Agência Fiocruz de Notícias, publicada pelo EcoDebate, 18/04/2013