[O Estado de S.Paulo] As causas da crise de eletricidade que enfrentamos têm sido amplamente discutidas na imprensa e parecem ser bem compreendidas: a expansão do sistema de hidrelétricas – a principal fonte de energia elétrica no Brasil – tem sido feita nas últimas décadas em usinas a fio d’água. Isto é, sem reservatórios de água que mantenham as usinas em funcionamento mesmo quando não chove durante longos períodos de tempo.
Isso não é culpa do atual governo federal, mas da incapacidade geral dos governos, desde 1990, de se engajarem num diálogo maturo com os ambientalistas e os movimentos sociais contrários à construção de barragens para a formação de reservatórios. A oposição ao governo Fernando Henrique Cardoso estimulou esses movimentos e paga agora o preço elevado que deles resultou.
Várias organizações ambientalistas, como a WWF-Brasil, tentaram iniciar esse diálogo, mas suas propostas foram recebidas com indiferença pelo governo, apesar de serem eminentemente razoáveis: escolher na Amazônia as bacias hidrográficas nas quais barragens e hidrelétricas poderiam ser construídas e preservar outras bacias em seu estado natural.
Atualmente os reservatórios das hidrelétricas estão praticamente no mesmo nível de 2001 e certamente teríamos um racionamento se não tivessem sido instaladas usinas termoelétricas, que usam gás, óleo combustível e até carvão. Sua construção foi iniciada no fim do governo Fernando Henrique e o governo Lula/Dilma Rousseff deu-lhes andamento. Mas energia gerada por elas é muito mais cara do que a das hidrelétricas.
Mesmo assim, o risco de racionamento não foi afastado, porque todas as termoelétricas disponíveis já foram acionadas e se a seca continuar faltará energia. A razão para tal é simples: as alternativas de geração de eletricidade disponíveis – que são as usinas eólicas (movidas pela força do vento) e as termoelétricas queimando bagaço – não foram estimuladas pelo governo, no fundo, por motivos ideológicos.
A partir de 2002 o governo decidiu expandir o parque gerador de eletricidade por meio de leilões que a Empresa de Planejamento Energético (EPE) realiza regularmente. Recebem as concessões as empresas que apresentam preços mais baixos para a energia produzida, seja ela hidrelétrica, térmica, eólica ou solar. A justificativa para esse procedimento é a de garantir a “modicidade tarifária”, quer dizer, o preço mais baixo da energia produzida, que, em tese, favoreceria as camadas mais pobres da população.
Essa é uma visão equivocada: por motivos técnicos, diferentes formas de gerar eletricidade têm custos diferentes de produção e, também, fortes componentes regionais. Se a energia eólica for gerada no Estado do Piauí e consumida no Rio de Janeiro, é preciso construir as linhas de transmissão adequadas. Além disso, gerar eletricidade para ricos e para pobres custa o mesmo.
Se o governo federal deseja fazer programas sociais com eletricidade para beneficiar os pobres, deve fazê-lo na venda, e não na sua geração. Foi isso que o governo Franco Montoro fez em São Paulo, em 1982, estendendo as redes de eletricidade às favelas e cobrando preços reduzidos dos habitantes dessas áreas, por meio de subsídios cruzados, em que os mais ricos pagavam tarifas maiores do que os mais pobres.
Ao nivelar nos leilões da EPE todas as formas de energia, o governo federal tornou inviável, na prática, o uso de bagaço de cana para gerar eletricidade em grande escala no Estado de São Paulo. Essa energia pode até ser um pouco mais cara do que a das hidrelétricas, porém está perto dos centros de consumo, o que reduz significativamente os custos de transmissão.
Apesar dos esforços do governo paulista, menos de 20% do potencial do bagaço de cana-de-açúcar – que é comparável à potência da Usina de Itaipu – está sendo utilizado, por causa da falta de interesse do governo federal. O que torna a situação ainda mais paradoxal é que a ideologia da “modicidade tarifária” levou o governo a usar térmicas a gás, cujo custo da eletricidade é cerca de três vezes superior à média nacional.
Os problemas que enfrentamos na área de energia elétrica não serão resolvidos com medidas intempestivas como a Medida Provisória (MP) 579 e a redução forçada de cerca de 20% nas tarifas, que está tornando o Sistema Eletrobrás e outras empresas geradoras inviáveis. Como foi feita, essa medida tem claramente um conteúdo demagógico e o Tesouro Nacional – ou seja, toda a população brasileira – vai pagar por ela. Vamos ter agora, além da Bolsa-Família, uma “bolsa-eletricidade”, que, aliás, vai beneficiar grandes indústrias eletrointensivas.
As consequências negativas da MP 579 já são evidentes na queda do valor das empresas, que terão, daqui para a frente, mais dificuldades para fazer investimentos, o que, como consequência, vai dar origem a mais “interrupções de fornecimento”, na linguagem oficial.
Soluções para a crise atual existem.
No curto prazo, é preciso remover os obstáculos para que a eletricidade do bagaço de cana-de-açúcar possa competir nos leilões da EPE e tomar providências para completar a ligação de centrais eólicas ao sistema de transmissão.
No longo prazo, é preciso reanalisar o planejamento de novas hidrelétricas – incluindo reservatórios adequados de água – e acelerar medidas de racionalização do uso de eletricidade, que até agora são voluntárias. Não basta, por exemplo, etiquetar geladeiras alertando os compradores sobre quais são os modelos mais eficientes, é necessário proibir a comercialização das geladeiras com alto consumo de energia, como fazem muitos países.
Um pouco mais de competência na área energética é do que o País precisa agora.
* José Goldemberg é professor emérito da Universidade de São Paulo e foi membro do Conselho Superior de Política Energética (CSPE) da Presidência da República.
Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.
EcoDebate, 20/02/2013