Famílias têm de lidar com uma série de dúvidas na hora de decidir se doam ou não os órgãos de um parente recém-perdido
Saúde
Os hospitais e instituições que mais contribuíram, durante este ano, para o incentivo da doação de órgãos e tecidos no Estado de São Paulo, foram homenageados pela Secretaria Estadual da Saúde no final de setembro com o Prêmio Destaque em Transplantes, distribuído em celebração ao Dia Nacional da Doação de Órgãos e Tecidos (27/9).
O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina (HC-FMUSP) foi um dos maiores vencedores. Além de ter liderado o número de transplantes de coração e pulmão na capital, seu Serviço de Procura de Órgãos e Tecidos (Spot-HC) notificou o maior número de potenciais doadores na cidade. Foram 60 candidatos encontrados entre janeiro e agosto. A área de atuação do órgão abrange toda a zona oeste de São Paulo.
A questão é: quantos desses se tornaram doadores efetivos e tiveram, de fato, seus órgãos disponibilizados para transplante? Todo paciente com morte encefálica – lesão irrecuperável do encéfalo que causa interrupção definitiva de todas as atividades cerebrais – é um potencial doador. “A decisão final sobre o destino dos órgãos da pessoa, no entanto, cabe à família”, explica Edvaldo Leal, enfermeiro e vice-coordenador do Spot-HC. A lei, até 1997, presumia que todos os brasileiros eram doadores, mas uma reformulação em 2001 transferiu para os familiares do paciente morto a responsabilidade sobre seus órgãos.
Equipe do Spot-HC notificou 38% dos potenciais doadores em sua região de abrangência neste ano
Os motivos para isso são vários. As famílias enfrentam uma série de dilemas éticos na hora de decidir o que fazer com o ente querido recém-perdido. “É uma questão que gera conflitos dentro do seio familiar”, comenta Leal. A própria dificuldade em compreender o conceito da morte encefálica contribui para a negação. É algo que ainda não está sedimentado para a maior parte da população. “A pessoa está na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), com o cérebro morto, mas o coração batendo e os outros órgãos funcionando. Para alguns, é difícil aceitar que ela morreu. Parece que há sempre uma luz no fim do túnel.”
Segundo o enfermeiro, a religião costuma, dentro desse sentido, ser usada como razão para não doar, mesmo que a maioria das doutrinas não se posicione contra tal prática. Muitas, pelo contrário, incentivam-na, tratando-a como uma demonstração de amor e respeito ao próximo. A crença em Deus, porém, alimenta a esperança da família de que um milagre possa acontecer para que o quadro de saúde do ente querido se reverta. Algo cientificamente impossível em se tratando de morte encefálica.
3. “Divergências entre os familiares da pessoa falecida, com posicionamentos favoráveis e contrários à doação dos órgãos, gera dificuldade consenso para a tomada da decisão” – Maria Cristina Massarolo
Para Maria Cristina Massarolo, professora do Departamento de Orientação Profissional da Escola de Enfermagem, a recusa em doar decorre de uma falta de esclarecimento sobre o assunto para a população. As campanhas de incentivo à doação não são o bastante. “As pessoas precisam de mais do que motivação para isso. É necessária toda uma educação relativa à doação de órgãos”, comenta.
A professora explica que, partindo-se do pressuposto de que a educação sobre o assunto é deficiente, a mudança na lei em 2001 e a consequente transferência da responsabilidade sobre os órgãos do morto para a família acaba sendo justificável. No entanto, ela destaca: “As pessoas deveriam ter o esclarecimento necessário para poder manifestar em vida o desejo de doar ou não seus órgãos após a morte”. Segundo ela, quanto melhor for a educação sobre o tema, mais argumentos se terá para assumir que a decisão cabe ao indivíduo, não à sua família.
Nos países com os melhores serviços de captação de órgãos do mundo, como Espanha e Estados Unidos, por exemplo, a temática da doação está inserida no cotidiano desde muito cedo. “É algo que falta por aqui”, acredita Edvaldo Leal. “Nesse países, o assunto é introduzido para as crianças ainda nas escolas. Isso é muito importante”.
Infraestrutura hospitalar
“As filas de espera para transplante sempre serão maiores do que a oferta de órgãos, independentemente de quão bom seja o Serviço de Procura de Órgãos de determinada instituição. É assim em qualquer país do mundo.”
Quem declara isso é Leonardo Borges, coordenador médico do Spot-HC. Os motivos, ele aponta, giram em torno da própria evolução da medicina. O envelhecimento da população, aliado ao aumento da incidência de certas doenças como obesidade, hipertensão e diabetes – que ao evoluir tornam necessário o recebimento de um novo órgão –, cria um aumento da demanda. “Você consegue manter um sistema estável de captação, mas a fila não vai diminuir”, reforça.
Ao longo dos últimos anos, os números têm melhorado no Brasil. O Sistema Único de Saúde (SUS) financia mais de 90% dos transplantes aqui realizados. Se em 2001 foram aproximadamente 10.500 operações de sucesso no País, em 2011 chegou-se à casa dos 23 mil, segundo dados divulgados no começo do ano pelo Ministério da Saúde. Um aumento superior a 100%. Do ano passado para cá, o crescimento foi de 12,7%.
Mesmo assim, ainda há o que melhorar. Principalmente no que diz respeito à infraestrutura hospitalar. “Eu não sei se o País está preparado, hoje, para viabilizar um sistema de transplante maior do que o atual”, diz o vice-coordenador Leal. Para ele, existe uma escassez de profissionais nas UTIs: faltam enfermeiros de terapia intensiva, fisioterapeutas, psicólogos para dar apoio às famílias, entre outras funções.
O enfermeiro completa o raciocínio: “Não adianta querer transformar o povo em uma população doadora se você não tem estrutura hospitalar para acompanhar a oferta de órgãos. Se as pessoas doarem mais e não tivermos a organização necessária para aproveitar essa oferta, haverá um descrédito enorme das instituições médicas responsáveis”.
Matéria de João Vitor Oliveira, na edição 146 da revista Espaço Aberto / USP, publicada peloEcoDebate, 07/02/2013