Trabalho de garimpeiros brasileiros causam risco de o metal ir para o ambiente e contaminar a atmosfera, o solo e os rios
“Tenho mais medo do mercúrio do que do aquecimento global. É uma questão mais grave, muito mais séria. Pior que o amianto, que é cancerígeno e afeta quem usa e quem trabalha com ele. O mercúrio se difunde e contamina o ambiente, os peixes e as pessoas que comem os peixes. Espalha-se na atmosfera. É um veneno que atinge a todos”. O desabafo é do físico Ennio Candotti, dono de extenso currículo acadêmico, duas vezes presidente da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) e atualmente diretor do Museu da Amazônia, em Manaus. Matéria de Daniela Chiaretti, no Valor Econômico, socializada pelo Jornal da Ciência / SBPC, JC e-mail 4661.
Candotti cita uma preocupação que é unanimidade em torno do mercúrio – trata-se de metal pesado tóxico e perigoso, que causa danos sérios à saúde e problemas graves ao ambiente. O consenso, no entanto, termina aí – como lidar com o problema é controverso. Há quem defenda que seja banido o quanto antes. Embora se saiba que é um elemento natural à crosta terrestre, a concentração global de mercúrio aumentou 300% no pós-revolução industrial.
Outra visão prefere uma mudança gradual, lembrando que em alguns casos ainda não existem substitutos. Em algumas situações pesa o orçamento, quando o metal pode ser opção mais barata, como nas obturações dentárias. Ou está no epicentro de um problema social e ambiental – o caso do garimpo na Amazônia. Que o mercúrio tenha seus dias contados, ninguém questiona. Que a solução é complexa, também não.
Todos esses aspectos da questão vieram à tona nos últimos anos, em fóruns reunindo representantes de 140 países. Discutiram o texto de uma legislação internacional, que restrinja o uso do mercúrio e reduza suas emissões.
Em janeiro, em Genebra, chegaram a um acordo. Lâmpadas, pilhas, baterias, cosméticos e outros produtos terão que estar livres de mercúrio até 2020. A maior fonte de emissões no mundo, as usinas de carvão, vão ter que se enquadrar também. Os países farão planos nacionais para controlar e reduzir o uso nos garimpos. O setor de cloro e soda terá que encontrar um substituto, e por aí vai.
Em outubro, no Japão, uma conferência das Nações Unidas pode bater o martelo no texto e produzir a Convenção Multilateral sobre Mercúrio, ou informalmente, Convenção de Minamata, nome que batiza o vilarejo japonês onde milhares morreram nos anos 50, porque uma fábrica despejou mercúrio em uma baía e contaminou moluscos, peixes e pessoas. Quando 50 países assinarem o tratado, e o ratificarem internamente, passa a ser lei internacional.
A iniciativa de se buscar uma arquitetura legal internacional se justifica pelo fato de o mercúrio ser um poluente global. “O mercúrio não respeita fronteiras”, diz o professor Olaf Malm, que há 25 anos estuda o assunto. O que é lançado na atmosfera pelas usinas de carvão na China pode chegar aos Estados Unidos. O que é jogado no solo e rios da Amazônia contamina peixes que serão consumidos em outras regiões.
“O mercúrio, quando vai para a atmosfera, tem um trânsito muito intenso, caminha pelos polos e pelas altitudes. Permanece muito tempo como vapor de mercúrio, para depois se depositar nos sistemas aquáticos”, explica. É ali que, diz Malm, a ação de bactérias o transforma em metilmercúrio, forma muito nociva que se acumula nos peixes. O maior problema está nos predadores, nos peixes do topo da cadeia.
Há países muito preocupados com o assunto. Segundo Malm, cada Estado americano sabe se em seus lagos há risco no consumo de peixes, e a população é alertada. A Europa estabeleceu valores rígidos de consumo de peixes com mercúrio. Se não há proibição, a população é avisada para comer certo peixe apenas uma vez por mês, por exemplo. “O Brasil é muito relapso nessa questão”, critica Malm, chefe do laboratório de radioisótopos e ex-diretor do Instituto de Biofísica da UFRJ. “O Brasil está na contramão da tendência mundial. Está sendo omisso”, alerta.
A assessoria de imprensa da Anvisa informou que o Brasil estabelece os mesmos limites para presença de mercúrio em peixes que os recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Os especialistas dizem que não é suficiente – é preciso saber o quanto aquela população consome.
“Se a pessoa come dois quilos de peixe por dia, como acontece em comunidades da Amazônia, esse nível é muito alto”, diz Bruce Forsberg, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e outro especialista no assunto. “Os ribeirinhos estão comendo muito mais mercúrio do que deveriam.”
Estudos na comunidade do lago Puruzinho, um afluente do rio Madeira onde vivem 200 pessoas, mostraram que o valor médio de consumo de peixe por dia, per capita, é de 406 gramas, diz o professor Wanderley R. Bastos. Há 14 anos ele vive em Rondônia e estuda os processos do mercúrio na Amazônia. “Não tem país no mundo com consumo tão elevado”, diz.
O tema vem ganhando espaço dentro do Ministério da Saúde. Em 2010, foram elencados os cinco grupos de substâncias químicas mais preocupantes à saúde – agrotóxicos, benzeno, asbesto, chumbo e mercúrio. A ideia, a médio prazo, é ter serviços mais estruturados de atendimento à população, diz Guilherme Franco Netto, diretor do departamento de vigilância em saúde ambiental e saúde do trabalhador do ministério. “A preocupação com mercúrio é grande, e não é de hoje.” Ele reconhece, contudo, a falta de dados sobre pessoas contaminadas no Brasil. “Temos esse dever de casa.”
“Esse esforço internacional é urgente e necessário”, diz a química Vera Maria Martins Salim, professora do programa de engenharia química da Coppe, na UFRJ, referindo-se à Convenção. “É deprimente saber que pouco ainda se faz nesse campo.” O foco do trabalho de Vera é remediar os impactos ambientais do mercúrio, desenvolvendo sistemas para a remoção do metal pesado em efluentes hídricos, gás natural e petróleo. “A melhor solução é não usar. E para o que já está aí, fazer um tratamento de limpeza”, sugere.
Os efeitos nocivos do mercúrio são conhecidos. “Testes realizados por cientistas, em 1997, demonstraram que vapor de mercúrio inalado por animais produziu uma lesão molecular no metabolismo de proteínas no cérebro, que é semelhante a 80% das lesões encontradas em humanos com a doença de Alzheimer”, lê-se no site do Ibama. Esse é o risco dos garimpeiros que usam mercúrio para formar uma liga com o ouro. Basta uma queima para separá-los, e o mercúrio vai para o ambiente, contaminando atmosfera, solo, rios.
O Brasil não é produtor, importa tudo o que consome. Em 2003, foram 80 toneladas. Em 2005, 40 toneladas. Em 2011, a importação foi de 17 toneladas. Em 2012, até setembro, 14,7 toneladas, 70% delas destinadas à indústria de cloro-soda de Camaçari, na Bahia. Depois vem o uso em amálgamas dentárias. Não se sabe ao certo quanto vai para o garimpo.
Para o Brasil, esse é um ponto nevrálgico. Na negociação internacional alguns países queriam a total proibição de uso. Os negociadores brasileiros se opuseram. “Não dá para banir o garimpeiro da face da Terra”, diz um delegado. O compromisso assumido em Genebra é de que os países com mineração artesanal de ouro elaborem planos nacionais até três anos depois que a Convenção entre em vigor, para reduzir – e, se possível, eliminar – o uso no garimpo. “O Brasil defendeu uma abordagem regulatória para formalizar a atividade”, diz Letícia Carvalho, gerente de segurança química do Ministério do Meio Ambiente. “Não que o Brasil não fosse favorável à restrição de uso, mas a mineração artesanal de ouro tem aspectos sociais complexos”, afirma Letícia.
Ao tentar formalizar o chamado garimpo artesanal, o governo brasileiro espera controlar o uso de mercúrio e torná-lo mais racional e sustentável, por mais estranho que isso possa parecer. Tem sido esse o esforço na província minerária do Tapajós, por exemplo.
A produção brasileira de ouro que vem dos garimpos artesanais não chega a 10%, estima o geólogo Edson Farias Mello, diretor do departamento de desenvolvimento sustentável na mineração, ligado à Secretaria de Geologia e Mineração do Ministério de Minas e Energia. Segundo dados do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), a produção total de ouro declarada em 2011 foi de 65.209 quilos, sendo que os garimpos responderam por 8.240 quilos. “Em termos econômicos não é uma atividade tão expressiva, mas a questão social vinculada ao garimpo é muito séria”, diz Mello.
Evidentemente, nessa atividade informal as cifras não são confiáveis. O único inventário que levantou o número de garimpeiros no Brasil é de 1993, do DNPM. Há 20 anos, a estimativa é que eles eram 400 mil, mais de 90% na Amazônia. No Tapajós, onde técnicos iniciaram há dois anos um trabalho de conscientização e capacitação de garimpeiros, foram identificados cerca de 300 garimpos. “O objetivo era recuperar o mercúrio usado no processo, fazer a queima em ambiente fechado”, conta Mello. Uma das ideias é estimular o uso de retortas – pequenos recipientes que abrigam a queima e não deixam o mercúrio escapar.
Em junho, o governo do Amazonas liberou o uso do mercúrio no garimpo. A medida teve repercussão muito negativa. Depois de muitos debates a norma foi revista, colocando condições para o uso. “Para fiscalizar e controlar o que acontece no interior da Amazônia, o governo precisaria ter um exército de fiscais”, diz o professor Candotti. “Em um mundo que é um faroeste terrível, e que nunca obedeceu ninguém, corremos o risco de apenas aceitar uma declaração de boas intenções e não resolver nada”, afirma. “A situação na Amazônia é alarmante.”
Também no plano internacional o mercúrio continuará em evidência. Usinas de carvão, por exemplo, não têm prazos para deixar de emitir. As novas, que surgirem depois de a Convenção estar em vigor, terão que usar a tecnologia mais moderna existente. As que já estão em operação terão seu destino definido na primeira reunião dos países signatários do tratado. Só então serão estabelecidos limites e critérios de emissão. “O processo de negociação conseguiu chegar até a lista das fontes consideradas relevantes”, diz Letícia, do Meio Ambiente.
Minamata: Contaminação matou 1.700 em vilarejo no Japão
A forma como o mundo irá lidar com o mercúrio nos próximos anos será definida em uma reunião diplomática em Minamata, no Japão, em outubro. Ali, o texto aprovado em janeiro, em Genebra, deve se transformar na Convenção de Minamata das Nações Unidas. O nome da cidade japonesa não foi escolhido por acaso – Minamata batiza um dos maiores desastres ambientais de que se tem notícia.
No vilarejo japonês de pescadores, entre 1932 e 1968, milhares de pessoas foram expostas à contaminação por mercúrio. Uma petroquímica despejou efluentes contendo altas concentrações do metal na baía de Minamata, rica em peixes e mariscos, dieta principal dos moradores da região. Adultos ficaram doentes e crianças nasceram com deformidades. Pelo menos 50 mil pessoas foram afetadas. Mais de 1.700 pessoas morreram pelo o que ficou conhecido como “Doença de Minamata”.
“Por muitos anos ninguém se deu conta de que os peixes estavam contaminados e que isso estava causando uma estranha doença na comunidade local e em outros lugares”, diz o site da
Organização Mundial da Saúde (OMS). Na década de 50, começaram a aparecer pessoas com casos graves de danos cerebrais e paralisias, delírios ou discursos incoerentes. Só anos depois o risco do envenenamento por mercúrio tornou-se conhecido no mundo todo.
Trata-se de uma contaminação silenciosa, de difícil diagnóstico e que pode levar à morte. Pode acontecer pela ingestão de peixes contaminados ou inalação do gás. Os sintomas do envenenamento vão da tremedeira nas mãos e pés, perda do campo de visão, dificuldades de audição e memória, problemas de coordenação motora. Estudos indicam que os fetos têm o dobro das concentrações das mães. O mercúrio inalado na forma de vapor – que ocorre nos garimpos – pode provocar danos no sistema nervoso, digestivo e imunológico e afetar pulmões e rins. Na forma líquida causa problemas na pele e olhos. Pode ser fatal se ingerido.
“A questão do pescado é gravíssima”, alerta o professor Olaf Malm, da UFRJ, que já foi várias vezes a Minamata. Já houve propostas, no Brasil, de monitoramento de possíveis casos de contaminação com treinamento de médicos em municípios onde isso poderia ocorrer. “Mas essas propostas nunca saíram do papel”, lamenta outro pesquisador, o biólogo Wanderley R. Bastos.
(Valor Econômico)
EcoDebate, 07/02/2013