quarta-feira, 6 de junho de 2012

Código Florestal, água e números, artigo de Vicente Andreu


mata atlântica
Foto: MMA
[O Estado de S.Paulo] O tema “água” ganhou relevância no debate sobre o Código Florestal em razão, principalmente, da definição das larguras das faixas das áreas ripárias de preservação permanente, também chamadas de APPs hídricas. O foco neste artigo é analisar o impacto das áreas de preservação permanente (APPs) ao longo dos cursos d’água.
Há boa literatura técnica nacional e internacional sobre a necessidade dessas faixas ao longo dos rios e, de maneira geral, se entende que sua largura é determinada pelas funções que exercem. Assim, se desejamos que a APP cumpra, por exemplo, a função de proteção de encostas e taludes nas margens dos rios, a faixa mantida deve ter de 5 a 8 metros. Se desejarmos também que preserve a biodiversidade e o chamado fluxo gênico, essa largura pode variar para até mais de 100 metros. Os valores e intervalos dessas faixas são determinados por fatores como clima, tipo de solo, declividade do terreno, profundidade e largura do rio, vegetação e outras, que podem variar significativamente numa mesma bacia hidrográfica ou num mesmo bioma.
Não há, portanto, a priori, definição exata da largura de uma dada APP de um determinado rio, mas há uma recomendação, em geral aceita, com base em diversos critérios técnicos, que estabelece que com 30 metros de cada lado do rio se cumpre a maioria das funções requeridas da APP hídrica em todos os locais. Essa recomendação de 30 metros, na maioria das vezes, vai além do que seria requerido para a proteção das margens, mas não é o limite superior para a preservação da biodiversidade, que deve considerar, ainda, a manutenção de corredores ecológicos. Por outro lado, a progressividade dessas faixas (30, 50, 100 metros ou mais), vinculada à largura do rio, é uma convenção de natureza técnica, que procura, por meio das APPs, atender a um conjunto de impactos positivos sobre a água, a diversidade biológica e o meio ambiente. Essas questões estão presentes nas duas notas técnicas emitidas pela Agência Nacional de Águas (ANA) como contribuição ao debate sobre o Código Florestal, sendo a primeira de junho de 2010.
Entendemos que a Medida Provisória (MP) n.º 571/2012 avançou ao restabelecer aspectos relevantes para a conservação, a qualidade e a produção da água, como a proteção de várzeas, de topos de morros, de olhos d’água e de manguezais. Mesmo a redefinição das exigências de recomposição das larguras mínimas das APPs hídricas merece apoio, por introduzir critérios para as chamadas pequenas propriedades sem deixar de fixar, no mínimo, as condições para a proteção das encostas e dos cursos d’água, o que é defensável.
No que se refere à água, nosso entendimento é que o mérito principal da MP foi ter restabelecido, para a maior parte do território nacional, as condições legais mais favoráveis para a segurança dos recursos hídricos. Lembramos que não houve alteração das regras gerais das APPs hídricas, mas somente – mesmo sendo um dos pontos mais polêmicos – da definição do tratamento que será dispensado aos processos de regularização, ou seja, locais onde hoje a APP está ocupada com atividades e, portanto, sem a vegetação protetora.
Um dos estudos recentes mais conhecidos sobre o uso do solo (Gerd Sparovek, USP) recomenda que a legislação e as políticas públicas destinadas à proteção e recuperação ambiental e hídrica devem dar prioridade às áreas hoje ocupadas com pastagens e, nelas, as grandes propriedades, por causa do impacto proporcional sobre o total do território.
Os dados sobre a estrutura fundiária, do Ministério do Desenvolvimento Agrário, apontam que há no Brasil cerca de 5,5 milhões de imóveis rurais, ocupando uma área total de cerca de 600 milhões de hectares (ha). Apenas 4% dessas propriedades têm mais de dez módulos fiscais, mas ocupam quase 65% da área total. A MP 571/2012 estabelece que essas propriedades devem manter APP mínima de 30 metros para todos os cursos d’água, incluindo aqueles com menos de 10 metros de largura.
Os imóveis rurais entre quatro e dez módulos fiscais representam cerca de 6% do total de propriedades e13% da área total. Neles a recuperação deverá ser também da faixa mínima de 30 metros, exceto para cursos d’água com menos de 10 metros de largura, que deverão recuperar, no mínimo, 20 metros de cada lado. É certo que a medida de 20 metros é menor que 30, mas é certo também que 20 metros cumprem em boa proporção as funções gerais requeridas para as APPs.
Se somarmos agora a parcela entre os cerca de 600 milhões de ha (estrutura fundiária) e os mais de 850 milhões de ha de todo o território, onde vale também a faixa mínima de 30 metros, chegamos a um total que não será inferior a 84% dos rios do País com a proteção mínima de praticamente 30 metros. Em nenhum lugar do planeta isso pode ser classificado como retrocesso, muito menos como prejudicial aos recursos hídricos, ainda mais porque sabemos que o principal problema ambiental dos nossos rios não vem das áreas rurais, mas sim da ausência de tratamento de esgotos das cidades brasileiras, onde vivem hoje 85% da população.
Como informação adicional, há cerca de 4,7 milhões de imóveis rurais com até quatro módulos fiscais, o que representa mais de 90% do total de propriedades, ocupando 24% da área fundiária (ou cerca 16% do território). Nesse conjunto, a APP hídrica será de 5 metros (até um módulo fiscal, 74% das propriedades, 5,6% da área total), 8 metros (de um a dois módulos fiscais, 16% dos imóveis e 5% da área) e 15 metros (de dois a quatro módulos fiscais, 9% dos imóveis e 5,7% da área).
Esse números ensejam que o assunto deve ser analisado de forma objetiva. A flexibilização de regras para a pequena propriedade atinge, por seu lado, a pequena parcela da área ocupada por esse segmento em comparação com a totalidade dos imóveis rurais, produzindo-se, ao mesmo tempo, regras consagradas de proteção hídrica na maior parcela do território.
Vicente Andreu é diretor-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA)
Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.
EcoDebate, 06/06/2012

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