O Brasil ainda não é, como pretende, o maior exportador de alimentos do mundo, mas já traz outro título bem menos louvável: o de campeão em uso de agrotóxicos, muitos deles banidos em outros países por seus malefícios comprovados à saúde. O uso indiscriminado desses produtos se traduz no aumento do número de intoxicações, cânceres e distúrbios hormonais, que afetam principalmente camponeses que pulverizam as lavouras, mas não se restringem a eles, contaminando o meio ambiente e atingindo consumidores no país inteiro, conforme mostram diversos estudos científicos. Para discutir o problema em seus diversos aspectos e buscar formas integradas para enfrentá-lo, a Fiocruz promoveu o Seminário de Enfrentamento dos Impactos dos Agrotóxicos na Saúde Humana e no Ambiente, na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp), no Rio.
O seminário reuniu pesquisadores e profissionais das áreas de saúde, economia e direito e representantes de associações e movimentos da sociedade civil, dos poderes Legislativo e Judiciário e de órgãos vinculados ao Ministério da Saúde, como o Instituto Nacional do Câncer (Inca), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador. Ao final, os participantes elaboraram um documento com propostas para nortear políticas públicas integradas.
Veneno do capitalismo selvagem
Na abertura do seminário, o diretor da Ensp, Antonio Ivo de Carvalho, enfatizou a importância de segmentos representativos da sociedade se articularem pelos interesses da cidadania. “Muitas instituições do estado são colonizadas por interesses opostos e se colocam em relação de vassalagem com os interesses de um capitalismo que pretende se manter selvagem”, criticou. Segundo ele, a Ensp busca sintonia com as necessidades da sociedade e na sua visão a saúde não depende só do acesso aos serviços de atenção médica e suas tecnologias, mas sim de ambientes saudáveis e do que são os objetos de consumo da população.
Para o coordenador nacional da Campanha dos Agrotóxicos e pela Vida, Cleber Folgado, o seminário traz três elementos de reflexão: não ser mais um problema dos camponeses e trabalhadores do campo, mas de saúde pública e de meio ambiente, atingindo o conjunto da sociedade, desde quem produz até quem consome; ser um veneno do qual somos o maior consumidor, submetendo-nos a um mercado que prioriza o lucro e o interesses de grandes transnacionais, e não a produção de alimentos saudáveis; e ser um dos pilares do modelo atual de agronegócio, que não se propõe a resolver a fome. “Este é um debate sobre soberania – soberania ambiental, alimentar e genética”, alertou.
O superintendente regional do Incra Gustavo Souto de Noronha também criticou o atual padrão de produção, acumulação e consumo, em cujas consequências se inclui o veneno que está na nossa comida. Ele defendeu uma reforma agrícola que vislumbra na agricultura familiar uma alternativa ao agronegócio e ao agrotóxico e afirmou que a agroecologia é uma política nacional do Incra, sem a qual a política da reforma agrária não se avançaria. Ele citou o conceito de assentamentos ambientalmente diferenciados, com projetos piloto de desenvolvimento sustentável em Macaé e Silva Jardim, no estado do Rio de Janeiro. “Localmente, e expandindo nacionalmente, poderemos reverter o paradigma de uso excessivo de agrotóxicos. Digo aos assentados da reforma agrária que uma folha de papel qualquer um rasga, mas uma resma, não se rasga. Temos que estar juntos transformando pequenas políticas públicas que vem sendo contruídas em grandes políticas públicas”, concluiu.
O representante da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), Fernando Carneiro, falou sobre o Dossiê sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde, lançado há um mês no Congresso Mundial de Nutrição e contou que uma segunda parte deste dossiê será lançado no dia 16 na tenda conjunta que a Fiocruz, a Abrasco e o Cebes terão na Rio+20. Carneiro lembrou que antes eram os EUA o maior consumidor de agrotóxicos. “Era uma terra sem lei. Hoje, é aqui que o rei está nu. Não existe fiscalização de agrotóxicos no Brasil hoje”, denunciou. Segundo Carneiro, as evidências científicas que já existem já são suficientes para embasar uma legislação sobre agrotóxicos. “A Política Nacional de Saúde Ambiental tem que sair dos gabinetes de Brasília e ser lançado na Rio + 20”, defendeu.
O gerente geral de Toxicologia da Anvisa Luiz Claudio Meirelles parabenizou a Fiocruz pelo título do seminário, que já parte do ponto do enfrentamento. “Concordamos com tudo que já foi dito sobre o modelo agrícola. A atuação da Anvisa será tanto melhor quanto mais cobrados nós formos sobre a retirada do mercado de produtos e pelos critérios para registro de novos. A razão de ser da Anvisa é um dia deixar de ser, o que ocorrerá quando não houver mais produtos tóxicos, que geram um custo gigantesco ao Brasil”, afirmou.
Segundo Meirelles, no Brasil inexiste legislação sobre os prejuízos causados pelas empresas que atuam aqui, num mercado oligopolizado. Ele contou que, em decorrência da avaliação toxicológica da Anvisa, cerca de metade dos agrotóxicos usados no país foi banido entre 2002 e 2012. Outros são mantidos no mercado com restrições. A avaliação é feita pelo Programa de Monitoramento de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para). “Agrotóxicos são democráticos no estrago que pode produzir à vida, porque estão nos alimentos e no ambiente. Por isso a regulação e a vigilância são tão importantes”, enfatizou.
A representante da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde Cassia de Fátima Rangel explicou que a secretaria costuma ser questionada sobre relações de causa e efeito de produtos, mas basta se saber que a exposição a um determinado agente químico causa um risco adicional para ele ser uma preocupação. Ela contou que a subnotificação de casos é imensa e que a pesquisa científica é importante para dar subsídios ao trabalho de vigilância. Na segunda mesa, mediada pelo pesquisador Marcelo Firpo, da Ensp, foram discutidos aspectos políticos e econômicos do modelo de desenvolvimento calcado no agronegócio e em políticas públicas hegemônicas que permitem a imposição dos agrotóxicos no campo por grandes indústrias estrangeiras.
Câncer, intoxicações e disturbios hormonais
Na manhã seguinte, na terceira mesa, os palestrantes concentraram-se nos danos dos agrotóxicos à saúde. Karen Friedrich, que faz pesquisa de resíduos no INCQS, abordou o risco dos resíduos em mulheres grávidas e amamentando. Marcia Sarpa de Campos Mello, do Inca, informou que estudos epidemiológicos indicam o aumento do risco de câncer em agricultores e detalhou os efeitos carcinogênicos e os distúrbios hormonais causados pelos agrotóxicos. Ela contou que testes de toxidade detectaram em amostras de maçã no Rio a presença acima do limite máximo aceitável de organofosforado, que causa mutação e danos genéticos e não tem registro no Brasil. Outros agrotóxicos sem licença no país também foram encontrados em amostras de cenoura, pimentão, pepino, laranja, beterraba, repolho, abacaxi e mamão. Para Marcia, quando esses efeitos danosos são comprovados, o produto deveria ser proibido.
O pesquisador Jorge Machado, da Fiocruz, abordou os casos de intoxicação, que, segundo dados do Sinan, chegaram a 80 mil em 2011. “A pulverização é o momento da intoxicação, e as mulheres camponeses são cerca de metade das vítimas”, disse. Ele defendeu a construção de um Programa Nacional de Agroecologia e Saúde fundamentado na sustentabilidade em saúde, na preservação da biodiversidade e na defesa da soberania alimentar e argumentou que, para isso, é preciso mais investimento em pesquisa. “Ainda não temos musculatura científica para fazer um embate com uma lógica interativa”, disse, e sugeriu a leitura de pesquisas aqui.
Ações públicas integradas
O pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), André Burigo, abriu a quarta mesa, sobre a ação estatal no enfrentamento aos impactos dos agrotóxicos na saúde e no ambiente, lembrando que na primeira Conferência Nacional de Saúde Ambiental, realizada em 2009, uma das diretrizes foi a mudança do modelo de desenvolvimento econômico visando a sustentabilidade ambiental através de ações públicas estatais.
O diretor do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador (SVS/MS), Guilherme Franco Netto, ressaltou ser fundamental o diálogo com a sociedade para entender o ambiente no processo de saúde e doença e ampliar o conceito dos determinantes sociais da saúde. Ele contou que há mais de uma década foi pensado um arranjo para o sistema de saúde agir, com centros de informação toxicológica e o registro de notificações compulsórias de intoxicação. Mas tais iniciativas não foram suficientes para enfrentar a realidade e, em 2007, foi pensada uma agenda mais propositiva, através de um grupo de trabalho permanente para tratar da temática dos agrotóxicos e saúde no âmbito do SUS, envolendo atores e gestores estaduais e municipais. Segundo o plano, centros de informação toxicológica deverão integrar a rede do SUS. “Não é suficiente, obviamente, mas não é uma agenda estratégica do curto prazo, mas um projeto a ser construído ao longo de um período que garanta a sustentabilidade para que se assegure. A agenda é mais ampla do que um sistema de vigilância dos estados e municípios funcionando”, explicou.
De acordo com Franco Netto, a atenção básica tem que integrar a força tarefa para expandir a capilaridade para atender as vítimas mais frequentes de intoxicação: trabalhadores jovens, mulheres e crianças. Ele contou que estão planejados inicialmente dez Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerests), sendo oito voltados especificamente para a população do campo, a partir de demanda de trabalhadores rurais. Segundo ele, um conjunto de medidas e ações interministeriais voltadas para a questão se faz necessária. “A mensagem que fica é que temos muito a fazer: estruturar competências, mapear o que existe e fortalecer articulações com movimentos sociais para fortalecer mecanismos de vigilância para que possamos agir em tempo, a partir de indicadores sentinela”, concluiu.
Franco Netto lamentou que o SUS desconheça o que outros ministérios fazem em torno dos determinantes sociais. “Estamos fazendo discurso no vazio. O SUS está esperando as pessoas aparecerem no pronto socorro para tratá-las. E o que está aparecendo é pinto perto do que vai vir. Precisamos agir sobre a determinação da saúde e não apenas cuidar das consequências. É possível produzir sem jogar veneno por aí. Esse é o nosso desafio”, afirmou.
Para o vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz, Valcler Rangel Fernandes, o não enfrentamento dos agrotóxicos pela saúde pública deve ser considerado um fracasso. “Não demos capilaridade a essa discussão. É fundamental a Fiocruz se associar a outras instituições e a movimentos sociais para adensar uma base capilarizada e buscar resgatar os conceitos de integralidade, universalização e participação social característicos do SUS na abordagem da questão dos agrotóxicos. Temos que ter vários debates ao mesmo tempo, mais profundos e com vários focos e parceiros, que poderão trazer bons ganhos na linha do banimento e de outros objetivos que devemos traçar.”
Rangel disse ser importante incluir também neste esforço de enfrentamento os ministérios da Previdência, do Desenvolvimento Social, do Desenvolvimento Agrário, do Meio Ambiente e do Trabalho, além de órgãos governamentais como a Fundacentro, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) e os Conselhos de Secretários Municipais e Estaduais de Saúde (Conass e Conasems). Ele espera que políticas de fomento estimulem, entre outras ações, a produção de materiais didáticos e a capacitação de médicos de saúde da família para orientar a população.
Matéria de Marina Lemle, da Agência Fiocruz de Notícias, publicada pelo EcoDebate, 08/06/2012