Pesquisadora denuncia política governamental de ocultamento dos danos à saúde gerados pelos agrotóxicos usados por empresas de agronegócio no Ceará
Desmatamento, destruição da biodiversidade, contaminação das águas, poluição sonora, pulverização aérea de agrotóxicos, passividade da comunidade, intoxicações, abortamentos, exploração do trabalhador e má distribuição de renda. A lista, resultado da reflexão de comunidades impactadas pelo agronegócio, é um dos dados da pesquisa coordenada por Raquel Rigotto, professora do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC). Também coordenadora do Núcleo Tramas (Trabalho, Meio Ambiente e Saúde), ela participou do seminário ‘Desigualdade Ambiental e Regulação Capitalista: da acumulação por espoliação ao ambientalismo-espetáculo’, promovido nos dias 31 de maio e 1º de junho pelo Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN) do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ippur/UFRJ).
Segundo a pesquisadora, o estudo iniciado em 2007 foi motivado pela quantidade anormalmente alta de casos de intoxicações por agrotóxicos na região cearense que se estende da Chapada do Apodi, zona na fronteira com o Rio Grande do Norte, ao Tabuleiro de Russas, às margens do rio Jaguaribe. A ligação entre o aumento dos casos e o agronegócio da fruticultura irrigada para exportação chamou atenção dos pesquisadores. Segundo ela, essas empresas – tanto nacionais, quanto transnacionais – começaram a se instalar na região no início dos anos 2000, graças a uma combinação de projetos governamentais de irrigação e incentivos fiscais.
De acordo com Raquel, é possível pensar no cenário das empresas que têm seus lucros na monocultura de frutas a partir de perspectivas variadas, todas desfavoráveis às comunidades que ocupam historicamente a região. Desde a implantação do perímetro irrigado, o índice de expropriação dos pequenos agricultores chegou a 81%, divulgou. A terra, antes usada pelos agricultores familiares para uma produção em pequena escala, passou a ter que responder à lógica das empresas monocultoras, que aumentam a produtividade dos hectares. “A exploração da terra é tão intensa que o solo se exaure e as pragas vencem. Eles [os empresários] entendem que o solo é um substrato onde se coloca o fertilizante”, expôs, exemplificando: “O monocultivo do abacaxi foi feito durante oito anos e então, tornou-se inviável. As empresas estão deixando essas terras e tentando a banana. O mesmo aconteceu com o melão. Eles argumentaram que foi por causa da alteração de preços no mercado internacional – e é claro que isso influenciou –, mas a gente vê claramente que eles perderam o controle da contaminação do solo por um fungo chamado fusarium. Usaram mais de 30 ingredientes ativos diferentes de agrotóxicos sem conseguir, entretanto, controlar a praga”.
As empresas também comprometem a água da região ao fazerem uso da técnica de pulverização aérea de agrotóxicos, um dos principais focos de resistência da comunidade. A população chegou a conseguir que a Câmara de Vereadores assinasse uma lei proibindo a prática, no entanto, lembra Raquel, seguiu-se o assassinato de Zé Maria do Tomé, liderança que lutou pela lei, e um mês depois houve a revogação da proteção. “Fizemos uma amostra da água que é oferecida às comunidades da Chapada pelo serviço municipal. Das 23 amostras em triplicata não encontramos nenhuma que não tivesse pelo menos três ingredientes ativos de agrotóxicos. A comunidade da Cabeça Preta tinha 12 ingredientes ativos em uma mesma amostra de água”, expôs.
Ainda em relação à água, Raquel citou um estudo feito pela agência governamental de gestão de recursos hídricos que mostrou que a contaminação por agrotóxicos já compromete os lençóis hídricos. “No município de Quixeré existem 244 poços profundos perfurados, 165 destes pelo agronegócio. É uma área de mais de quatro mil hectares irrigada assim. Nesse estudo, eles colheram 10 amostras de água e acharam agrotóxicos em seis delas. A contaminação subterrânea de água por agrotóxicos é muito mais complexa do que, por exemplo, a contaminação biológica, em que você põe cloro, filtra”. Segundo a pesquisadora, até hoje o governo não cobra as empresas pelo uso da água.
No quesito incentivo ao agronegócio, a pesquisadora explicou que, além de receberem isenções de vários impostos, as empresas usam agrotóxicos 100% livres de taxas governamentais. “No Brasil, por convênio federal, até 60% do ICMS é isento. No Ceará e em outros estados do país, como o Mato Grosso, isso foi considerado pouco e os governadores concederam a ampliação para 100%. Os agrotóxicos são livres de ICMS, IPI, PIS-Pasep e Cofins”, relatou.
Política ativa de ocultamento
E o Estado? O que faz diante da comprovação dos males desse modelo de desenvolvimento? Segundo Raquel Rigotto, o mesmo estado que é eficiente na atração das empresas, dando subsídios, também garante a ocultação dos impactos sobre as populações tradicionais. “Este Estado não tem um laboratório que possa dosar a quantidade de veneno que está contaminando a água, não tem um serviço de saúde capaz de diagnosticar as intoxicações agudas ou os efeitos crônicos provocados na saúde humana pelos agrotóxicos”, enumerou, concluindo: “Consideramos que é uma política ativa de ocultamento dos impactos. Ao lado disso, a produção da legitimidade simbólica [ao agronegócio], através da geração de empregos, o discurso do atraso e da modernização, em que o campesinato é identificado com o atraso, e a integração do Nordeste com o mundo desenvolvido. Isso impacta sobre as comunidades e são elas que pagam o preço, porque perdem o acesso à terra e aos bens naturais e têm seus modos de vida profundamente modificados”, lamentou.
E se a criação de empregos legitima o agronegócio, a professora explica que, na realidade, a história não é bem assim: “Em 2008, 1,3 mil trabalhadores da empresa exportadora de abacaxi fizeram uma greve. A reivindicação principal foi uma cesta básica. O emprego que supostamente legitima a implantação desses empreendimentos tem uma qualidade tal que os trabalhadores têm que reivindicar cesta básica, o que não deixa de ser um bom indicador do que está sendo oferecido”.
Contaminação humana
Os impactos dos agrotóxicos na saúde humana podem ser facilmente imaginados. No entanto, qualquer esforço de imaginação fica muito aquém da realidade, conforme mostram os resultados dos estudos do Tramas. De um total de 545 pessoas examinadas pela amostra epidemiológica, divididas entre trabalhadores do agronegócio, pequenos agricultores e pertencentes a comunidades de reforma agrária ou assentamentos em transição agroecológica, salvo este terceiro segmento, 30,7% tinham quadros compatíveis com intoxicação aguda no momento do exame. Entre 5% e 19% apresentaram alterações hepáticas importantes em um universo de nove indicadores de função hepática. “Durante esse período, houve um óbito de um trabalhador da empresa do monocultivo do abacaxi. A empresa atestou que a causa da morte foi uma hepatite de origem sexual, mas nós comprovamos, em um relatório assinado por quatro professores de Medicina da UFC, que se tratava de uma hepatopatia crônica provocada pelos agrotóxicos”, revelou Raquel.
Mas os dados mais alarmantes são os relacionados ao sangue das pessoas expostas aos agrotóxicos. De acordo com a pesquisadora, 29% dos trabalhadores do agronegócio e dos pequenos agricultores apresentaram alterações hematológicas. A partir da divulgação desses dados, o setor de Oncologia Hematológica do Hospital Universitário da UFC se interessou pelo tema e iniciou a nova pesquisa, adiantou ela. “De 55 trabalhadores do monocultivo da banana que aceitaram fazer o mielograma, que é um exame bastante doloroso para verificar a produção do sangue, já concluímos os exames de seis. Dentre estes, cinco estão com alterações cromossômicas provocadas pelos agrotóxicos, ou seja, faltam pedaços nos cromossomas, o que é um preditivo de leucemia”.
De acordo com a professora, do ponto de vista epidemiológico mais amplo, os três municípios estudados foram comparados com outras 12 cidades do estado com aproximadamente o mesmo número de habitantes. O objetivo era comparar os efeitos da agricultura intensiva com os efeitos da agricultura de sequeiro, em que o agricultor, embora influenciado pela revolução verde e querendo usar agrotóxicos, não dispõe de recursos para isso. “Comparando os grupos, encontramos 38% de internações a mais por câncer nos três municípios e 40% a mais de óbitos fetais, mostrando as implicações dos agrotóxicos sobre a má-formação congênita, que é geralmente o que leva ao abortamento”, explicou Raquel.
Matéria de Maíra Mathias, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), publicada pelo EcoDebate, 13/06/2012