Camundongos expostos ao ar ambiente de São Paulo durante a gestação e após o nascimento desenvolveram placas ateroscleróticas 13 vezes maior que os do grupo controle, indica pesquisa
Resultados preliminares de uma pesquisa feita na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) indicam que a exposição à poluição atmosférica nos grandes centros urbanos durante a gestação e logo após o nascimento aumenta o risco de desenvolvimento de aterosclerose em indivíduos predispostos mesmo que eles adotem uma dieta com baixos teores de gordura.
A aterosclerose é uma doença inflamatória, caracterizada pelo enrijecimento e obstrução dos vasos sanguíneos devido à formação de placas de gordura. Seu agravamento ao longo dos anos pode causar problemas como infarto, acidente vascular cerebral e trombose.
“Diversos estudos apontam a poluição como fator de risco para a doença, mas, de acordo com a literatura científica, animais predispostos só desenvolveriam a placa aterosclerótica caso recebessem uma dieta rica em gorduras. Por isso os resultados que obtivemos surpreenderam”, disse a bióloga Mariana Matera Veras, responsável pela pesquisa e membro do Instituto Nacional de Análise Integrada do Risco Ambiental (Inaira) – um dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) financiados pela FAPESP e pelo CNPq no Estado de São Paulo.
O estudo foi feito com camundongos geneticamente modificados para desenvolvimento de aterosclerose. Os animais foram divididos em oito grupos e, ao fim do experimento, passaram por um exame de ultrassom para avaliar o tamanho da placa de gordura que havia se formado no interior dos vasos sanguíneos.
Os quatro primeiros grupos receberam uma dieta balanceada e com baixos teores de gordura desde o desmame, com um mês de vida, até o fim do quarto mês. O primeiro, considerado o grupo controle, ficou em uma câmera com ar filtrado e não sofreu exposição à poluição nem durante a gestação, nem após o nascimento.
O segundo grupo foi exposto ao ar poluído apenas durante a gestação e, nos quatro meses após o nascimento, foi colocado na câmera com ar filtrado. O terceiro grupo foi exposto apenas após o nascimento e o quarto grupo sofreu exposição tanto no período de gestação como após o nascimento.
Os quatro grupos restantes foram submetidos aos mesmos padrões de exposição aos poluentes, mas, diferentemente dos outros, foram alimentados de forma balanceada só até o terceiro mês de vida. Nos três meses seguintes, receberam uma dieta rica em gorduras.
“Nos animais que receberam a dieta rica em gordura o efeito da poluição foi menos importante e obscurecido pela alimentação”, disse Veras.
Já entre os camundongos com dieta balanceada, aqueles expostos à poluição durante a gestação apresentaram placa aterosclerótica três vezes maior que a observada no grupo controle. Nos camundongos expostos aos poluentes apenas após o nascimento, a placa foi sete vezes maior e, quando somadas a exposição gestacional e a pós-natal, o aumento foi de 13 vezes.
“Os dados sugerem que a poluição funciona como um fator de modificação do ambiente uterino. A poluição pode programar esses animais, fazendo com que tenham maior risco de desenvolver aterosclerose mesmo que após o nascimento adotem dieta balanceada e vivam em um local com ar puro”, disse Veras.
Os resultados foram apresentados no 31º Simpósio Anual da Society of Toxicologic Pathology, realizado entre 24 a 28 de junho em Boston, nos Estados Unidos.
Multigerações
O grupo do Inaira investiga agora fatores como a quantidade de gordura circulante no sangue dos animais, marcadores inflamatórios e a expressão dos genes associados à formação da placa aterosclerótica para entender como a poluição interfere na progressão da doença.
“Sabemos que os poluentes agravam processos inflamatórios no organismo e isso favorece a progressão da placa, mas queremos saber se há outros mecanismos envolvidos”, disse Veras.
Paralelamente, outros estudos para avaliar o impacto dos poluentes na gestação e no sistema reprodutivo são conduzidos no Inaira, sob coordenação do professor Paulo Saldiva, também da FMUSP.
“A literatura científica mostra que a poluição das grandes cidades está relacionada à prematuridade, mortalidade neonatal e pós-neonatal, retardo do crescimento intrauterino e baixo peso ao nascer. Além disso, causa alteração da razão sexual, fazendo com que nasçam mais mulheres do que homens. Para estudar melhor esses desfechos, montamos um modelo animal”, explicou Veras.
Os experimentos com várias gerações de camundongos foram feitos no jardim da FMUSP, próximo a uma avenida movimentada da capital paulista. Os animais do grupo controle ficaram em câmaras com ar filtrado e o outro grupo, exposto ao ar ambiente.
“Já na primeira geração de animais expostos, verificamos diminuição da fertilidade, ou seja, o número de bebês camundongos nascidos vivos é menor e têm redução do peso ao nascer, o que também já foi observado em humanos”, disse Veras.
Na segunda geração de animais expostos ao ar poluído foram observados esses efeitos e alguns outros. As fêmeas apresentaram irregularidades no ciclo reprodutivo e os casais levaram em média mais tempo para copular, pois os machos mostravam desinteresse.
“Também houve nas fêmeas uma redução no número de folículos ovarianos, o que sugere que as gerações seguintes podem sofrer problemas de infertilidade. Nos machos, verificamos alterações na morfologia dos espermatozoides”, contou Veras.
Baixo peso no nascimento
Durante a passagem da segunda para a terceira geração de camundongos, os pesquisadores do Inaira notaram alterações na placenta que explicariam pelo menos em parte a redução no peso ao nascer.
“Também observamos que o cordão umbilical dos fetos expostos à poluição é mais fino, o que favorece a compressão. Avaliações de alterações na placenta e no cordão umbilical seriam viáveis em humanos e poderiam trazer informações importantes sobre os efeitos da exposição à poluição do ar na saúde fetal”, disse Veras.
Os pesquisadores avaliam atualmente a terceira geração de camundongos para entender se o baixo peso ao nascer tem impacto na saúde ao longo da vida. Já foi possível notar que os animais nascem com uma redução de 25% a 30% no peso dos órgãos.
“No pulmão, há um retardo do amadurecimento e, aparentemente, um menor número de alvéolos. Isso poderia significar um prejuízo da função respiratória. No rim, o número de glomérulos também é menor e há alterações no volume de alguns compartimentos cerebrais”, disse Veras.
Segundo a pesquisadora, essas alterações no desenvolvimento fetal não seriam grandes o suficiente para impedir que os animais levassem uma vida normal. “Mas caso sejam desafiados por uma doença no futuro, isso poderia fazer a diferença”, avaliou.
Os resultados das pesquisas com a primeira e a segunda geração de camundongos já foram publicados. O artigo Chronic exposure to fine particulate matter emitted by traffic affects reproductive and fetal outcomes in mice (doi:10.1016/j.envres.2009.03.006) de Mariana Matera Veras e outros, pode ser lido emwww.sciencedirect.com/science/article/pii/S001393510900053X .
O artigo Increased levels of air pollution and a decrease in the human and mouse male-to-female ratio in São Paulo, Brazil (doi:10.1016/j.fertnstert.2006.06.023) de Ana Julia F. C. Lichtenfels e outros, pode ser lido em www.fertstert.org/article/S0015-0282(06)03183-9/fulltext .
O artigo Particulate Urban Air Pollution Affects the Functional Morphology of Mouse Placenta(doi:10.1095/biolreprod.108.069591) de Mariana Matera Veras e outros, pode ser lido emwww.biolreprod.org/content/79/3/578.full.pdf .
Matéria de Karina Toledo, da Agência FAPESP, publicada pelo EcoDebate, 17/07/2012